O terceiro

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Toda mês era a mesma coisa, seu padastro tirava mais um pouco da vida dela.

Carla já não tinha mais amor próprio, ao longo dos dias passou a cultivar nojo de si mesma.

Sentia-se suja e usada.

Era como se sua alma estivesse infectada.

Burra. Era assim que a mãe dela a chamava, não pelo abuso que ela sofria, mas por tentar contar para alguém. Por tentar escapar.

Carla já tinha buscado diversas formas de tentar se livrar de tudo aquilo e em todas suas tentativas sua mãe intervia.

Morava em uma cidade pequena, sua mãe já havia manipulado as pessoas daquele inferno, fez com que todos pensassem que Carla era a doida da história.

Na rua as pessoas a olhavam com nojo, algumas outras até com pena.

Ela só queria entender o porquê de sua mãe odiar tanto sua própria filha, o porquê de sua mãe defender tanto aquele protótipo de ser humano.

Todas as vezes sua mãe saía de casa, sempre uma vez por mês. 

Talvez sua mãe pensasse que aquilo era o certo ou acreditasse que seu marido a amava. Ela escolheu acreditar nos gostos nojentos daquele infeliz, ela escolheu o amar ao invés de proteger a sua filha.

Era tudo que a menina gostava de pensar, iludir sua mente e acreditar que a sua mãe só fazia aquilo porque não queria perder outro marido, mas ela também sabia que ele a traia. 

Sua mãe a chamava de burra, mas a única estúpida da história era ela. Uma covarde. Uma fracassada.

Carla fazia visitas frequentes à escola, era maçante estudar ali. O seu plano era estudar em casa e assim fazia. Quando finalmente fizesse os tão esperados 18 anos ia fugir e dessa vez sua mãe não iria poder mandar o Conselho Tutelar atrás dela.

Tudo estava planejado, ela não poderia viver mais com aqueles doentes.

Esse mês não ia acontecer e se dependesse dela nunca mais aconteceria.

Ela ia ser livre.

Tinha fé que seria.

Tola na esperança de liberdade.

Marcos era o nome dele, havia afastado todos da sua última família porque o doente espancava sua antiga mulher por não obedecê-lo e satisfazer suas vontades.

Mesmo assim a inútil achava que ele ia trabalhar, que ia cuidar da família, que ele ia mudar. Acreditava em um monstro transtornado por demônios.

Ele era um andarilho destruidor de almas que encontrou uma viúva burra e desamparada o bastante, para colocá-lo dentro de casa e oferecer sua própria filha, se ele acreditava ser louco, tinha a plena certeza de que aquela mulher era muito mais.

Carol aquela que dizia ser mãe, tinha um histórico terrível na polícia saiu de sua antiga cidade assim que seu marido morreu, aquele bastardo vinha traindo ela com a irmã. Não suportando mais a situação mandou que o matassem, achou que assim ficaria bem, mas com a morte dele sua dor e angústia só pioraram.

Ela tinha uma filha e todas as vezes que a olhava lembrava de seu falecido marido, odiava tanto aquela menina.

Queria que ela sofresse e na primeira oportunidade contribuiu para.

Ela não amava aquele doente, mas ainda sim havia colocado ele dentro de sua casa porque ele fazia aquela inútil sofrer.

Carol precisava de um homem, de um alguém que a satisfizesse, acreditava não poder viver sozinha.

A pequena Carla só queria amor, era o que mais precisava... o quê mais ela poderia querer? Já não era dona nem de seu próprio corpo.

Ela já tinha amado, mas sua mãe também lhe tirou isso. Disse que aquilo não era amor, que era errado e até mesmo a levou para uma igreja, para que tirassem o demônio da prostituição de seu coração. 

Como se tudo que Carla sentia fosse sujo. Como se tudo que tocasse fosse perverso.

Na visão daqueles que diziam viver de amor, tudo que Carla sentia era ilusão, era passageiro, era carnal e pecaminoso. 

Mas não era e ela tinha plena certeza disso.

A mãe dela via que nada adiantava e para separar Carla de sua amada espalhou um boato e pronto, as pessoas se levam pelo que escutam, nem ao menos procuram saber o que realmente aconteceu.

Afinal, não se importam.

Carla

Eu pensei que aguentaria, pensei que suportaria mais um mês naquele inferno que um dia eu chamei de casa.

Mas não podia, doía tanto olhar meu reflexo no espelho e não me ver, não conseguir me reconhecer e não saber o que eu me tornei.

Não me encontrar.

Era impossível enxergar no meu reflexo a menina sonhadora, cheia de desejos, carregada de projetos e sorrisos. Se tornou tão doloroso sorrir e Deus sabe o quanto dói dizer que estou bem e no fundo nem recordar o que é sentir-se bem.

Minha lâmina agora era minha única companheira, quem descobria meus cortes me julgava por isso. 

Julgavam minhas marcas, minhas cicatrizes. Mas ainda assim eles não iriam substituí-la.

Ninguém mais ia me proteger.

Ninguém queria me amar incondicionalmente, um dia eu tive pessoas que me amavam e todas elas foram arrancadas da minha vida.

Uma por uma, e como uma miserável com os dias que passavam aos poucos eu fui esquecida.

Deus, como dói.

Os cortes se aprofundam, eu sei o que vai acontecer, mas não vou parar. Não quero.

O sorriso de meu pai, eu poderei revê-lo.

Sei que o encontrarei no inferno, anseio por ver e finalmente saber quem nós culpamos por nossa desgraça.

O sangue jorrava de meus pulsos e doía tanto. Mas como tudo na vida iria passar.

Afinal essa é a função do tempo, passar.

Passar e deixar para trás pessoas frias, sorrisos destruídos e vidas devastadas.

Algo considerado bom ao ponto de vista de quem não é afetado ou que consegue fingir não ser.

Começo a rir em meio as minhas lágrimas, quem diabos pensa nisso na hora de sua morte. Sou uma puta filósofa, uma histérica abandonada.

Agora tenho a certeza de que eu não tenho salvação. Logicamente sou uma problemática.

Ou ao menos um dia fui.

Um dia fui alguém que queria conhecer o famoso paraíso, mas me tiraram dele e jogaram-me em uma realidade perversa.

Não era justo e eu sei que nada é.

E então, de frente ao espelho eu pude finalmente me enxergar.

Depois de tanto tempo eu pude enfim observar a garota que um dia acreditou, a garota que teve fé.

Mas tão rápido como veio se foi e então voltei a esquecer e vi o que me tornei.

Vi no meu olhar a dor em forma de uma nuvem cinza e em cada cicatriz escutei um grito histérico de socorro.

Céus! todas as partes de minha alma clamavam por calma, minha carne se corroía em dor e meu espírito queria partir.

E quando minha visão tornou-se turva foi que os meus medos riam da situação. 

Doeu e questionei-me novamente se todo aquele sentimento era eterno, porque no fim eu ainda estaria sujeita ao que me atormentava.
Ainda acorrentada por esses demônios.

E quando a dor esparramou em todos os meus sentidos, eu fui.

Dessa vez eu sabia que estava indo de encontro ao meu inferno.

Cinco Formas de MorrerOnde histórias criam vida. Descubra agora