*** 1994. A úLTIMA CeRVeJA. ***

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*** 1994. SeTeMBRO. SáBADO. A úLTIMA CeRVeJA. ***

Ruivão estava desconfortável. Chegou em casa depois da meia-noite. Embora tenha descido do ônibus universitário perto de casa, decidiu perambular pelo centro de Porto Alegre antes de chegar em casa.


Precisava pegar algumas cervejas para ajudá-lo a digerir a noite na biblioteca. Passou em um dos inferninhos da avenida Júlio de Castilhos para pegá-las e encontrou alguns colegas de ofício mais chegados na portaria. Conversou um pouco, menos que o normal, pagou pelas oito latas geladas, preço de prateleira de supermercado, e tomou o rumo de casa.

Quando entrou, ao fechar a porta do apartamento, jogou as chaves no sofá. Sentou-se ao lado delas e colocou as latas na mesinha de centro da sala. Abriu a primeira lata e bebeu-a em um só fôlego. Largou a lata deitada ao lado das demais, que permaneciam em pé. Mexeu no bolso interno do casaco junto ao peito e pegou a agenda. Já tinha lido boa parte dela no ônibus sob o protesto dos outros alunos que queriam dormir e solicitavam que ele desligasse as luzes sobre o seu acento.


O desconforto de Ruivão não passava, trocava de posição no sofá e bebia outra lata de cerveja. Na verdade, a cada cerveja, ele só aumentava. Pegou uma caneta e umas folhas de papel que deixava sob o tampo da mesinha de centro de sua sala. Rabiscou no papel, era bom no desenho. Desenhou um coração estilizado, jogado no gramado ao lado de uma janela. Duas bolinhas em uma tigela. Não estava funcionando. A filha estava trabalhando no hospital e ele podia se preparar para receber a visita de uma velha conhecida. Ele bebeu todas as cervejas que conseguiu e adormeceu ali mesmo quando em seu último pensamento desperto, embora longe de ser sóbrio, percebeu que a visita não viria. Já fazia um bom tempo que ele não a convidava. Temia pela integridade física da filha. Percebeu que a noite seria solitária quando o relógio mostrou que já passava das três horas da manhã.


Acordou por volta das dez horas da manhã com o sol no rosto. Uma dor de cabeça leve. Tinha certeza que não era por causa da cerveja, estava acostumado a beber. Lembrou que não tinha jantado e precisava comer algo.


Decidiu logo por se levantar, mas reacomodou-se de imediato no sofá quando olhou para a mesa de centro. Sentiu o desconforto voltar quando derrubou todas as latas de cerveja no chão, não tinha dormido o suficiente, não tinha jantado e não tinha conseguido encontrar uma posição confortável no seu sofá preferido.


Inclinou-se por sobre a mesinha e olhou o desenho-convite que produziu para o encontro que não aconteceu.


Lembrou de ter procurado pelo coração do músico nos arredores da casa na qual tinham encontrado o seu corpo naquela terça-feira de dezembro de 1993, enquanto que a polícia buscava por pistas dentro do imóvel. Olhou por todas as janelas, do lado de dentro e de fora dos cômodos. E nada encontrou, além do papel que tinha caído de dentro do violão quando o policial o recolheu como evidência. Ele estava tão preocupado em ensacá-lo que não viu o papel cair do instrumento musical enquanto o girava para que entrasse no saco. Ruivão tinha juntado o papel do chão enquanto o policial se afastava e reconheceu a letra de música que tinha ouvido na noite da sexta-feira imediatamente anterior.


Mas só agora, ao olhar o desenho na mesa, lembrou do cover musical que tinha precedido a música da banda “She's as taking as no one” naquele palco. A garota da voz afinadamente rouca tinha apresentado a última música, mas a canção não tinha começado em inglês. A garota fazia parte da banda.


Ela cantarolou à capela os versos conhecidos de outra música de grande sucesso nas rádios e programas de televisão Brasil afora. Cantarolou e deixou o palco.


Mas Ruivão sabia que muitas vezes o problema não está no que se diz, mas naquilo que não é dito. Neste caso, importava o que não foi cantado...


Olhou o desenho e ignorou o coração que desenhou jogado do lado de fora da janela. Ignorou os olhos na tigela. Ao fundo, dentro da casa, visto pelo lado de fora daquela janela: um boneco sentado no chão, encostado na parede e com um círculo vazado no peito, oco; como aqueles buracos que ficam em alguns personagens de desenho animado quando são atingidos por um tiro de canhão.


Retirou as três folhas grampeadas da Playlist. E revisou a lista no pé da última página. A página do encerramento sem o “nto”. Estava ali:


“1 Vou chorar

2 Sem coração

3 Frenéticas”.


Ele repetiu para si mesmo, agora em voz alta:


- Frenéticas.


Coçou a testa e lembrou da música, da melodia. Com os dedos indicadores nas têmporas, cantarolou os versos da primeira estrofe da música que a garota tinha cantarolado à capela. Trabalhando na noite, sabia de cor toda a música. Não apenas os versos que todo mundo conhece. Mas, também, os versos que não são tão famosos. Não apenas o refrão... Cantou o resto da música e lembrou de parte do sonho que teve. Não estivera sozinho.


Contou as cervejas no chão:


- Cinco, seis... e sete.


Contou de novo:


- Seis e sete...


Procurou debaixo do sofá. E não precisou procurar muito mais, a sala era pequena... Não estivera sozinho. Fez uma breve busca pela casa... agora para ver se estava sozinho e: nada. Estava sozinho. Mas não estivera sozinho.


Esqueceu da fome; esqueceu do desconforto. Precisava ter certeza, como sempre. Ligou o rádio já sintonizado em 107.1 Mhz. Pegou o telefone na estante, colocou na mesa de centro e sentou novamente no sofá. Tinha herdado a linha de telefone da avó e mantinha o número em seu nome desde então. Discou os números que sabia de cor. Aguardou um pouco e pediu:


- Perigosa, das Frenéticas.


Satisfeito, desligou o telefone e aguardou. No rádio, o locutor deu o serviço, falou das festas para o final de semana e a música começou. Ruivão apertou a tecla “Record” no toca-fitas do rádio, cantou a primeira estrofe e ouviu atentamente as demais:


“Eu tenho veneno
No doce da boca
Eu tenho um demônio
Guardado no peito
Eu tenho uma faca
No brilho dos olhos
Eu tenho uma louca
Dentro de mim...
Sei que eu sou
Bonita e gostosa
(...)
Eu vou fazer
Você ficar louco
Muito louco
Muito louco
Dentro de mim
Muito louco, louco”

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Continua no próximo capítulo:
*** 1994. SeTeMBRO. DOMINGO. O eSQUILO. ***

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Versão em quadrinhos:

https://my.w.tt/gUkoloi2l0

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Agradecemos às visitas.

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