Capítulo 29 - A dama do tempo

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132 dias antes do Juízo Final

— A filha do Sr. Tyler? — Perguntei, de forma retórica e sabendo que aquele ferimento ainda não havia cicatrizado.

— Sim. A mais bela e reluzente estrela que já brilhou no meu céu — Afirmou Elijah, segurando com ambas as mãos os cabelos bagunçados e puxando-os, como se estivesse a arrancá-los para suportar o ódio das lembranças.

Nunca fui a melhor das pessoas para consolar alguém em momentos assim, na verdade não sirvo nem para consolar olhando o meu próprio reflexo no espelho. Mas, eu entendia a dor que ele estava sentindo, também havia perdido alguém importante o suficiente para apagar a chama da minha vida, entretanto procurei forças naquelas que ainda permaneceram aqui ao meu lado.

Uma em especial foi o alicerce resistente que precisava, jamais encontrei figura mais amável para alguém que uma mãe, um ser afetivo além da compreensão humana, com coração nobre e puro, e foi no ímpeto de poder retribuir todo o esforço dela para que eu tivesse a melhor das vidas que continuo lutando neste mundo cruel. Hoje, ela já não pode se manter tão ativa, a enfermidade absorve suas energias e a prende a uma cama dia e noite. Porém, eu estarei aqui para levantá-la quantas vezes for necessário, assim como ela enxugou minhas lágrimas as incontáveis vezes que não compreendi a vida.

— Sinto muito Elijah... todos nós sentimos muito a perda de Zelda... o que aconteceu a ela foi algo trágico.

— Trágico? — Retrucou Elijah, com um olhar de fúria — Você chama suicídio de trágico? Há todo um rastro deixado no percurso, vocês não conheciam profundamente a alma de Zelda para afirmarem que sua morte foi um evento triste isolado no espaço-tempo.

— Não foi isso que eu quis dizer...

— Não interessa o que você quis ou não dizer — Me interrompeu ele, possesso de raiva — Esse é o mal da humanidade, achar que sua visão de mundo é a única correta e adequada, recheada de moralismo barato. Raríssimas exceções se colocam verdadeiramente no lugar do outro, entendem suas angústias, escutam suas súplicas e secam suas lágrimas.

Por um instante, pensei em me desculpar, mas vendo sua reação a qualquer palavra que saísse da minha boca, optei em ficar quieto e deixar que descarregasse sua ira contida.

— Aposto que nenhuma pessoa que a conheceu sabia de sua habilidade. E é óbvio que não são superpoderes como os vistos em quadrinhos, mas uma condição de sua própria mente que a tornava muito especial. O cérebro humano é incrível, e você se espantaria com a capacidade que ele tem de moldar tudo ao nosso entorno. Zelda variava seu humor conforme o clima, isso quer dizer que se tornava radiante e alegre com um céu azul anil limpo e sem nuvens, e da mesma forma se entristecia com dias cinzas e chuvosos, se entregando a uma melancolia ensurdecedora. Conhecendo a cidade de Riverside, cuja predominância temporal é opaca e taciturna, acha que ela vivia em qual estado de espirito? Como queria eu ser o sol radiante que transbordasse luz em seu caminho, a poupando de estar nesta eterna estação negra.

Depois de parar um tempo observando a parede a sua frente, como se conseguisse atravessa-la com o olhar e ver o clima lá fora, ele continuou sua divagação.

— A dama do tempo melhor do que ninguém, compreendia a angustia da existência, suas reflexões cirúrgicas tocavam o cerne da alma, somente alguém com o seu talento poderia entender a profundidade da mente dos doentes, e iluminar o melhor caminho para superar a cidade fantasma. Vivia a escrever sobre questões que incomodavam seu ser, compondo verdadeiros poemas de dor filosóficos que me faziam embriagar-se com suas palavras metafóricas.

De dentro do porão pode-se escutar o início da chuva que se estabelecia além das paredes de cimento, gotas pesadas atingindo toda a extensão da casa, como se alvejassem um inimigo. Elijah se espantara com o fato, se levantando repentinamente e estendendo as palmas das mãos, depois inclinou a cabeça e estirou a língua, parecendo sentir a chuva. Rodopiava de uma maneira teatral, com os olhos fechados, executava uma dança harmoniosa com a natureza que se mantinha do lado de fora da casa.

— Veja! — Falou ele, ainda de pé encenando algo em sua mente — A dama do tempo está reagindo as minhas palavras. Ela ainda pode me ouvir suplicando por sua alma e entonando seu nome. Nosso amor proibido não se encerra após a morte, pelo contrário, ele se fortalece além da vida. Não importa o que as pessoas falem sobre o fato de nossas diferenças de idade serem grandes o suficiente para a sociedade que vivemos, não precisamos das leis deste mundo, o messias irá purificar a terra assim como as lágrimas de Zelda lavam neste momento os pecados de todos que na cidade vivem. Viveremos sem o fardo imaculado do julgamento e livres finalmente seremos.

Elijah passou a se comportar de maneira estranha, como se um personagem estivesse assumindo o controle do seu corpo, os movimentos com a chuva invisível eram quase que ritualísticos, e suas palavras ainda mais confusas transmitiam uma profecia orquestrada pelo misterioso messias, que estavam conectadas ao livro intitulado "o evangelho do diabo" e a história surtada do primeiro prefeito.

Seria mesmo a sinfonia o meio pelo qual esse apocalipse contra o mal se concretizaria? Teria sido a primeira onda uma espécie de presságio da era em que não haveria mais sofrimento ao ser humano? Independentemente de qualquer resposta, ou melhor, da ausência dela, eu tinha uma certeza, o esquema era muito grande, e diferentes pessoas em Riverside estavam colaborando para que tudo acontecesse conforme o desejo do dono da organização.

Foi então que ainda hipnotizado com a ideia de seu amor proibido estar sussurrando e reagindo as suas palavras, que Elijah começou a gargalhar e recitar um texto que não demorou até captar minha atenção, conectando as engrenagens que explicariam o papel dele e de seu grupo nesta orquestra do fim dos tempos.

— Por menosprezar a vida e banalizar a criação, eis que o dia é chegado, e nenhum ser, homem ou mulher, jovem ou velho, escapará das garras do ceifeiro, que tocando o soneto maldito iniciará o fim dos tempos. Pessoas escutarão uma harmonia ensurdecedora dentro de suas mentes, imagens das sombras eliminarão a sanidade, torturando cada segundo de existência, arrastando suas almas para o inferno com ódio e amargura.
Os condenados desejarão arrancar seus fios de cabelo com as próprias mãos para amenizar as notas macabras que tilintarão ininterruptamente, irão sangrar tentando estourar seus tímpanos e finalmente cederão a única opção que as aliviará.
A morte.

Ofegante, vendo aquele balé circense, quase caí para trás com a descoberta. Estava tão claro desde o início.

As trombetas do apocalipse.

O próprio nome indica que sua função é anunciar a chegada do fim, e ninguém melhor do que o líder do culto para representar o mensageiro esquelético. E por mais que este seja um passe importante para atravessarmos o labirinto, eu sabia que Elijah tratava-se apenas de uma marionete cega, articulada sem o conhecimento de como seus movimentos são realizados. Seu clube, apenas fiéis enfeitiçados por palavras que fazem-nos pertencer a algo maior que suas vidas, uma causa real e de proporções colossais capaz de mudar a história.

Assim como o rei dos esgotos espalhava por cada esquina e beco da cidade as lendas de construção de toda a mitologia que resultaria na sinfonia do juízo final, Elijah agia sendo o porta-voz desta catástrofe, o rosto, mesmo que em forma de caveira, de uma verdadeira orquestra de movimentos friamente calculados.

Aos poucos, com passos mais lentos que o desejado, as cabeças da hidra iam sendo cortadas, restava saber se novas não surgiriam no lugar para nos impedir de avançar.

Conhecendo um pouco mais nosso adversário, a forma como se comunica com seus súditos, o cuidado que tem ao espalhar suas ordens, tudo demonstrava um sujeito astuto, porém, mortal como todos nós, no fim, não passaria de um homem, que sangra como qualquer outro. 

A sinfonia do juízo finalOnde histórias criam vida. Descubra agora