Capítulo 09 - A fortaleza dos quatro

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298 dias antes do Juízo Final

Já passara há um bom tempo da meia noite, e ainda estávamos os quatro na sala a nos embriagar. A consciência leve, não nos permitia dançar com tanta maestria, e por vezes, encontrar um apoio para esperar a tontura passar era a melhor das alternativas. Rebecca antes fechada e introvertida, agora sorria abertamente, substituindo o papel pela própria face ao desenhar corações e traços abstratos que não consegui identificar.

Stanley era o típico bêbado risonho, gargalhava de qualquer história boba que contava sobre seu período no exército, principalmente uma na qual teve que andar com as calças arriadas. Kathy se sensibilizava fácil, e alternava suas lágrimas entre choros de alegria e tristeza.

Conversamos sobre diversos assuntos, alguns descontraídos e sem muito fundamento, aquele tipo de tema que usamos para permitir esvaziar a mente, sem preocupações de entender seu contexto ou responder. Alguns outros mais sérios, relacionando filosofia, ciência e religião.
Entretanto, o desabafo mútuo foi a parte fundamental naquela noite, raras às vezes tivemos coragem de abrir nossos medos e anseios, podendo pelo menos um instante retirar a capa pesada que carregávamos e deixá-la de lado por um tempo, descansando nosso corpo fadigado.

Kathy contou a respeito do relacionamento difícil com o marido, e dos inúmeros dias que suportou para não atrapalhar a criação do único filho. Dizia, com as palavras moles e por vezes juntas devido ao álcool, que a maldade era como um parasita que se alimentava do medo dela, crescendo a cada minuto que absorvia uma nova etapa de humilhação.

Tudo começou com palavras ofensivas e desleais, que pisavam em cima do respeito e cuspiam hostilidades ácidas, manchando o mundo belo que conhecera com os pais na infância, que por mais sofrida que fosse, sem luxo ou vaidades, disponha do essencial. Amor e carinho.

Não demorou até as agressões verbais se solidificarem, transformando-se em empurrões e puxões, os motivos banais iam de atrasos a diferenças de opiniões. Ela aguentava tudo, por que no fundo, mantinha esperanças de um dia melhorar, e o mais importante, manter um lar saudável e estável para Daryl. Infelicidade e angústia eram refletidas em seu hobby, suas composições no violino soavam igualmente esmorecidas, carregadas de um timbre atímico, capaz de fazer até mesmo os anjos chorarem.

Tirando a história por trás das harmonias originais que compunha, e desmembrando-a da bagagem emocional e melancólica da vida, Kathy era talentosa e não demorou muito até ser reconhecida por Gracie, dona da maior escola de artes de Riverside, e convidada a ministrar aulas para um grupo de prodigiosos jovens, onde conheceu Rebecca.

Mas, nem mesmo o sucesso repentino da esposa, mudara a postura do marido, que após dado o primeiro tapa no rosto, abriu passagem para que o mar vermelho de violações fosse escancarado, e um relacionamento saudável jogado no mais profundo círculo do inferno. Não havia mais volta, e acorrentada a uma vida miserável, lamentando pelo que poderia ter sido diferente, a mulher de personalidade guerreira, porém, por vezes, ingênua, era ludibriada por breves momentos de melhora, sempre sendo convencida quando o nome do filho era mencionado.

Todo o trauma teve um lado bom, e futuramente evitou o sofrimento quando o homem autoritário e inescrupuloso foi morto no dia da sinfonia, enforcado em sua própria gravata. Sua única lastima fora pela criança, que chorava a perda do pai.

Outra que também abriu um pouco mais sobre sua vida, fora Rebecca, a moça escarlate e contemporânea, na maioria dos momentos, fechada e inacessível, demonstrou-se após algumas viradas de tequila uma jovem artística e dedicada, irmã mais velha, tendo Summer como seu contraponto, me lembrava em certos momentos Zelda, com o traço da boca reto, sem de fato expressar algum sentimento.

Falou com pesar sobre a morte dos pais, e como seu mundo ficou de ponta-cabeça ao se encontrar sozinha, tendo a responsabilidade de cuidar e zelar pela irmãzinha. Não era um fardo, pelo contrário, ela amava Summer, porém, isto não diminuía a carga em seus ombros. A estava ensinando a tocar piano, claro que ainda aprendera apenas as primeiras notas, decorando a sequência maior de Dó, e aquilo a enchia de orgulho. Adorava passar as tardes na escola de artes, se sentia mais confortável expressando-se através de gestos, sons e desenhos. Rebecca tinha um dom latente e sensível para o abstrato, sabia dançar, tocar piano e alguns instrumentos de corda, além de traços cubistas fantásticos, que fazia todos na academia a admirarem.

Não era necessário palavras para entender seus pensamentos e anseios, bastava vê-la realizando qualquer uma de suas habilidades para compreender um pouco melhor daquele ser quieto.

O quarto elemento do nosso minigrupo terapêutico, formado a partir da dor, era Stanley, rapaz forte e atlético, corpulento e marcado pelos anos militares. Detentor de um ótimo coração, teve uma infância difícil, os pais imigrantes vindos da Nigéria tiveram inúmeras dificuldades para se estabelecerem no país, criando o filho sobre circunstâncias extremas de pobreza, porém, mantiveram-se guerreiros e persistentes, carregando a característica de seu povo.

O pai morreu quando ele ainda era criança, vítima de um tiroteio entre a polícia e alguns bandidos da região, o caso claro não chegou a nenhuma mídia. A mãe carregava doenças crônicas como diabetes e reumatismo, que após um tempo a atrapalharam para exercer suas atividades.

Sem muita alternativa, e se sentindo no dever de retribuir o esforço que seus pais fizeram para dar-lhe a melhor formação possível dentro de suas condições, Stanley agarrou o mundo com imensa força, trabalhava de dia e a tarde, estudava a noite, e realizava bicos na madrugada, teve épocas que dormia duas horas apenas. Ingressou após os dezoito anos no serviço militar, servindo ao país que seus pais lutaram para chegar e se manter.

Ao entrar na faculdade, apaixonou-se por duas coisas, literatura, seja ela em prosa, versos ou HQ's, e por Leah, uma formosa moça, cujo carinho e paixão pela vida o fez entregar-se perdidamente a este amor. Vivera seus anos de ouro nesta época, conseguindo conciliar muito bem todas as áreas da sua vida, crescendo e se desenvolvendo profissionalmente, cuidando de sua mãe, e respirando um sentimento pela namorada que o fez se sentir o homem mais feliz do planeta.

Entretanto, ter no fatídico dia a amada morta em seus braços, sem poder salvá-la, levou um pouco de seu brilho, sendo soprado pelo vento até o mar, onde seria difícil de recuperar. Se agarrava agora a última pessoa que restou em sua jornada, a mãe.

No fim, todos tínhamos alguém que mantinha nosso desejo de sobreviver inflado, a centelha acesa que nos fez criar a resistência do fim do mundo. Pessoas normais, unidas pela morte e pelo sofrimento, que ao invés de se entregarem ao destino, lutariam até o fim pela vida. Uma fortaleza sustentada por quatro pilares.

Kathy tinha o filho Daryl.

Rebbeca, a irmã mais nova Summer.

Stanley a mãe doente de nome Adeola.

E eu, minhas duas queridas filhas, Sophy e Zelda.

E em resumo, também tínhamos agora uns aos outros. Sendo inegável a importância destas pessoas neste momento tão confuso e traumático que enfrentávamos.

A sinfonia do juízo finalOnde histórias criam vida. Descubra agora