Capítulo 28 - Dia das bruxas

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132 dias antes do Juízo Final

Após observar por um tempo e em silêncio a reflexão fúnebre de Elijah, e depois de tentar consolá-lo mesmo sem entender por completo a história e o contexto que sua poesia havia sido escrita. Superei a barreira da sua vida privada e pela primeira vez o escutei falar de si próprio, sem lentes desfocadas ou névoa encobrindo seus sentimentos, me agarrando ao primeiro pedido feito por ele sobre julgamentos, e apenas escutando sem nada dizer.

— Poderia dizer que tudo começou de fato no dia das bruxas — Iniciou falando Elijah — Peculiar não? A noite estava linda, como um imenso manto negro com pérolas lustrosas espalhadas uniformemente em sua extensão, a lua cheia e amarelada, vigiava imponente do céu as crianças que corriam pelas ruas com suas fantasias animalescas. Muitas vestidas em variações de bruxas ou esqueletos, lembro-me até de ver pela janela da casa algumas usando trajes semelhantes ao meu. Reconheço que minha idade talvez seja ultrapassada o suficiente para se fantasiar, mas me sinto bem dentro do corpo ou espirito da morte, o conforto que traz a ideia de ser representante do pós vida, e dos segredos personificados em uma única figura, instigam o pensamento. Óbvio que não sairia nas ruas gritando doces ou travessuras, entretanto, meio que como um ritual religioso, costumava ir até ao mercado e comprar vários chocolates para distribuir a todos que passassem em minha morada. Porém, assim como em anos anteriores, aquele dia das bruxas caminhava para o fracasso total.

O rosto do melancólico Elijah se entristecera, contraindo-se e encolhendo os olhos como quem não queira ver sua própria expressão, buscando se esconder do mundo.

— Possivelmente por medo das histórias que corriam pela vizinhança sobre os animais empalhados, as crianças temiam minha presença e sempre saltavam a casa durante sua jornada à procura dos doces, como se fosse amaldiçoada, e eu o monstro que as aprisionaria na masmorra do castelo. Elijah o esquisito, Elijah o paranoico, Elijah a aberração, Elijah o perturbado, Elijah o monstro, Elijah o assassino de animais, poderia continuar fazendo uma lista de nomes, mas acredito que você próprio já os tenha escutado. Muitos até hoje associam a morte trágica de meus pais a ideia de que eu me tornaria alguém no mínimo "diferente" das outras pessoas. Por que insistem em julgar com base nas suas percepções? Acaso existe ser humano capaz de vislumbrar o futuro? Detentor da verdade absoluta e da moral eterna do espirito?

Ele fez uma pausa, dobrando o papel que lera a pouco e colocando-o no bolso traseiro da calça.

— Confesso que meu hobby possa ser um tanto incomum, e os interesses atípicos pela morte uma discussão pouco sociável no mundo que vivemos. De início, só queria que respeitassem meus gostos e escolhas, mas hoje, não me importo mais com o que pensam. Percebi que a raiva que nutria pela humanidade trazia consequências negativas apenas a minha própria pessoa, ninguém mais era afetado pelo meu ódio e desprezo, tudo que acontecia seria a corrosão das estranhas do meu ser a cada dia que passava. Demorei para construir este quebra-cabeça e enxergar uma figura real de convivência, e aos poucos construí uma linha de pensamento menos tóxica, que permitisse viver sem almejar o extermínio da raça humana. O ponto de partida para a libertação da alma aconteceu naquele Halloween, onde uma única criatura me fez enxergar com olhos de anjo, de cima, sem a contaminação intrínseca do homem.

— A nobreza daquele coração em meio ao oceano de impurezas me fez lembrar de Sodoma e Gomorra, as cidades bíblicas destruídas por Deus com fogo e enxofre vindos do céu, um lugar de luxúria imaculada e moralidade podre que poderia ter sido salva por Abraão caso concretizasse a premissa de encontrar apenas dez justos que morassem em suas ruas sujas, pessoas essas que mereciam ser salvas em meio a blasfêmia profanadora dos demais habitantes. O fim foi óbvio mesmo com a presença de Ló e sua família, grupo prudente segundo o patriarca. E logo se soube que não teria saída para aquelas terras, e a destruição seria uma certeza escrita no livro do destino.

— Se fossemos trazer a mesma situação para o mundo atual em que vivemos, perceberíamos que não difere muito do cenário daquela época, apenas substituindo as doutrinas cristãs por uma visão básica e harmoniosa do ser humano, onde se prese pelo bem verdadeiro e cego ao próximo, talvez seja difícil encontrar dez justos para evitar que tudo terminasse novamente aniquilado. Mas, com imensa certeza, e uma convicção maior que o nascer de um novo dia, se eu fosse Abraão, e a mim delegada tarefa tão árdua, seria você a primeira e última escolha para apresentar-se ao criador como a salvadora do planeta.

Elijah parou e deu um breve suspiro, como se um eclipse que tivesse a muito tempo apagado sua luz tivesse ido finalmente embora.

— Já esparramado no sofá, ainda fantasiado de morte, devorando os chocolates que não haviam sido entregues para ninguém, pois, nem mesmo os coroinhas da igreja que frequentava vieram coletá-los, escuto a campainha tocando. Ao levantar-se pouco esperançoso e afoito, caminho até a porta, e observo pelo olho mágico duas pessoas, uma menina pequena, de não mais de cinco anos, e uma adolescente de aproximadamente quinze. Busquei na memória a figura de seus rostos, que usavam roupas combinando, duas encantadoras diabinhas, com tridentes, caudas e chifres. Sem conter a animação, abri a porta com entusiasmo, esbocei um sincero sorriso aparecendo por baixo do capuz que usava e segurando numa das mãos pendurada na ponta da foice a cesta de doces.

Elijah fez uma pausa, como se saboreasse a lembrança.

— Doces ou travessuras! — Narrava ele, gesticulando com ambas as mãos uma espécie de tentativa de interpretar o grito de seus visitantes — Jamais poderei me esquecer daquelas palavras, simples e singelas, mas de um valor inestimável. Pela primeira vez em cinco anos alguém batia a minha porta para pedir doces, igual acontecia nos filmes e em toda a vizinhança. "Que poderia dizer eu perante tais figuras maléficas a minha frente, se não, que levem tudo que tenho!". Falei para as simpáticas moças, arrancando sorriso de ambas, a menor dera até uns saltinhos empolgada. Peguei um punhado da cesta, tanto quanto poderia caber na mão e enchi o saco que trazia. "Agradeça ao senhor morte irmãzinha". Falou a adolescente, que trazia uma beleza incomum e peculiar, trajada com adereços e maquiagem majoritariamente escuros. "Muito obligado senhor morte". Falou a pequenina, enrolando a língua ao dar uma bela mordida na barra de chocolate. Caprichosamente depositei mais alguns na sacola, piscando para ela e em seguida fazendo um sinal de silêncio, colocando o dedo indicador à frente dos lábios. "Gostei da fantasia!". Acrescentou a jovem de cabelos caramelizados e olhar penetrante. "Arrisco dizer que a figura mais importante para a vida". Complementou. Depois de agradecer de forma misteriosa e silenciosa, assim como o faria a verdadeira morte, citei uma frase de Dante para incrementar a sua observação. "Do viver que é uma corrida para morte". Em seguida também a elogiei. "Injusto seria eu caso não desse os devidos méritos a personalidade tão importante quanto as próprias criaturas do fosso abissal". E surpreendentemente, fui agraciado em resposta com uma outra citação da aclamada 'Divina comédia'. "O caminho para o paraíso começa no inferno".

Ao mencionar em voz alta a frase, percebi Elijah se surpreender, acredito que de igual maneira como da primeira vez que a situação teria acontecido.

— Com sorrisos descontraídos e olhares de satisfação nos despedimos. No momento, eu não sabia dizer quais sentimentos foram evidenciados com aquela curta e breve conversa, algo estranho aflorava dentro de mim. Uma agitação incomum dos nervos, por algum instante havia sentido até mesmo uma espécie de atração magnética. Me puni mentalmente e senti nojo dos meus pensamentos ao olhar com desejo para aquela adolescente, devo ter quase 10 anos a mais que ela, pensava, e para agravar tal infração, é menor de idade, uma menina ainda em formação. Imoral sou por ter passado imagens tão sórdidas na cabeça.

Percebendo que ele sofria para dar seguimento a história, possivelmente por remeter a pensamentos reflexivos destrutivos, me contentei em aguardar sem nada dizer.

— Você já amou Stanley? Amar alguém a ponto de querer fundir seu espirito ao dela? De tornar-se um só ser? De existir de maneira perpétua ao seu lado? E no mesmo instante ter a sensação de que o que faz é errado? Que almeja um pecado proibido aos humanos?

Sem muito pensar, respondi.

— Amei Leah sim, talvez da maneira transcendental que descreve. E claro também não deixaria de fora o amor por minha mãe, que redefini o próprio sentido da palavra.
Com o semblante pesado ele continuou.

— Pouco lembro do afeto de meus pais, mas sei que completo e íntegros foram. Entretanto, o amor que nutri por Zelda foi o primeiro que provei com gosto tão doce e suave. Um elixir divino capaz de curar a mais cruel das doenças. A solidão. E superar o maior dos abismos. A morte. 

A sinfonia do juízo finalOnde histórias criam vida. Descubra agora