Capítulo 35 - A divina comédia

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78 dias antes do Juízo Final

Depois que entrei para o grupo chamado sangue escarlate, algumas histórias que antes pareciam apenas simples mitos ou realidades distantes, começaram a fazer um pouco mais de sentido.

Estar lá junto de Gracie e Raissa ainda era um enorme desconforto, porém, desde que o homem que se apresentou sendo um investidor de nome Peter estivesse por perto, elas não tinham como levantar um dedo se quer contra a minha pessoa. Ele aparecia em dias esporádicos, sempre para conversar com a Sr. Gracie, seus assuntos eram tratados de forma privada e praticamente nada se sabia sobre o que falavam.

Sua fisionomia semelhante ao grande olho era um mistério. Após o ensaio, nunca mais tive contato direto com ele, que apenas acenava gentilmente quando me via executando afazeres na escola. Morávamos numa cidade pequena em extensão, então alguns rostos mesmo que raras vezes vistos, eram armazenados em nossa memória fotográfica, e o daquele homem era um destes casos. Ele afirmava que vinha de outra região ao norte, entretanto, seus traços não permitiam que mentisse.

Na maioria das vezes, em seguida a estas conversas, Raissa era convocada por Gracie, que após receber das mãos do próprio Peter um documento, retornava com a carta escrita afirmando ser de um alguém que todos chamavam de Messias. O conteúdo dos textos era variado, mas majoritariamente tratava-se de orientações sobre o trabalho que executávamos dentro do grupo.

Sangue escarlate tratava-se de uma união de artistas musicais com diferentes conhecimentos e estilos, todos pré-selecionados na avaliação que eu outrora também havia me submetido. Nosso objetivo era um tanto quanto diferente, porém, interessante.

Tínhamos que transformar o livro "a divina comédia" em música, para ser mais exata, o canto um, conhecido como 'inferno', mas não do jeito que fiz com a canção "Serafim", usando alguns temas da obra para construir uma composição comum, fazíamos metodicamente uma espécie de tradução do poema, como se as palavras escritas por Dante tivessem sentidos ocultos e arrancaríamos esta interpretação através da música.

De início, tive dificuldades para assimilar a forma correta de fazer aquilo, mas o que mais me incomodava não era a dificuldade em interpretar as palavras e transformá-las em notas musicais e harmonias, e sim, escutar Raissa dizendo sobre minha incapacidade de executar tarefas simples, afirmando que qualquer músico de verdade conseguiria fazer sem nenhuma dificuldade.

"Isso que dá recrutar qualquer pessoa". Repetia ela quando passava entre as filas de pessoas trabalhando nas traduções e parava sob a minha mesa.

Após algum período tentando usar os ensinamentos que a mim foram passados, desenvolvi um modelo próprio adaptado do original, ele consistia em posicionar as letras do alfabeto comum nas linhas de uma partitura, fazendo com que uma letra soasse como uma nota musical. Os resultados eram incríveis, avaliando por este lado, toda a sonoridade da obra realmente parecia ter sido escrita para ser uma canção, tudo se encaixava de maneira bela e bem arranjada quando tocada numa disposição correta.

Por vários dias pensei vislumbrar epifania e entrar em confronto com a realidade, será que a divina comédia de Dante teria sido criada de maneira oculta para ser uma linda sinfonia? E não "apenas" um poema épico? O ciclo infernal tocado no piano, meu instrumento preferido, trazia uma melancolia angustiante, arrastada com um sofrimento atemporal, transcendendo o nosso espaço e tempo. Tão bem-criada e metricamente ritmada, que gerou dúvidas, desacreditando se aquilo poderia ser apenas obra do destino, e ter sido constituída de maneira aleatória.

A dinâmica que adotaram para a atividade também era bem específica, ao invés de cada um dos representantes pegar uma parte dos escritos e cada qual realizar as conversões para juntarmos ao fim, contrariando o conceito de otimização de tempo e recursos, executávamos tudo de forma individual, sendo que as versões eram comparadas depois. Isto permitia que de maneira unitária os músicos fizessem suas próprias interpretações dos versos e criassem canções únicas, mesmo que utilizando a fonte de consulta idêntica.

Não podíamos compartilhar com ninguém sobre o que fazíamos todas as noites numa das salas de estudos da escola de artes de Riverside, os participantes eram vistoriados na entrada e na saída, essa discrição claro que despertou meu interesse.

Com o tempo comecei a associar as cartas que Raissa lia em voz alta para todos e as histórias fantasiosas que aprendi durante o breve momento que estive com o grande olho. Se eu tivesse algo que poderia ser útil para Aaron e os demais, com certeza seria este conglomerado de informações, que num primeiro momento pareciam desconexas e independentes uma das outras, porém, com os caminhos voltando a se cruzar, um único trajeto começava a se desenhar aos nossos pés. O fim estava batendo à porta, e ainda precisávamos entender como expulsá-lo. 

Se ao menos eu conseguisse acesso aos escritos complementares da história de 'Kabus, o senhor dos pesadelos', algo que atualmente adormece nos mistérios profundos dos antigos mitos de Riverside, talvez o oculto pudesse ser revelado, e as sombras dariam espaço a brilhante luz da verdade.

A sinfonia do juízo finalOnde histórias criam vida. Descubra agora