Epílogo

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Jamais imaginei que as águas de Riverside poderiam ser tão calmas quanto estas que meu corpo se banha, sinto que minha alma está sendo lavada e renovada a cada segundo que passo aqui imerso.

Depois de tudo, ainda tinha uma última missão a cumprir, e não poderia haver lugar melhor que este para tal.

Do mesmo jeito que vi a primeira vez, ela permaneceu. Agora, a garrafa de Zelda iria seguir seu próprio caminho, assim como ela desejou. Ainda lacrada e intacta a segurei com força entre as mãos, espremendo como se me despedisse pela última vez de minha princesa. Entretanto, feliz por saber que ela deveria estar me observando de cima naquele exato momento, correndo alegre pelos palácios encantadores de Mafarki, vivendo como um lindo sonho.

Depois de dar um beijo no objeto, que carregava em sua essência a alma de Zelda e a verdade jamais revelada sobre a sinfonia do juízo final, a soltei no rio, fazendo movimentos com as mãos para que as correntezas a levassem por toda a cidade, até que chegasse a alguém que faria daquela mensagem a transformação de sua vida, ou talvez, até mesmo do mundo.

— Te amo princesa! Agora continue iluminando os sonhos de todos que descansam.

Enquanto observava a garrafa sumindo no horizonte rumo aos confins de Riverside e do acaso, me espanto ao ver uma outra, também de vidro e com um papel enrolado dentro, vindo da direção oposta até mim. Custei acreditar no que meus olhos estavam vendo, seria o destino uma criança brincalhona se divertindo com os homens?

Me esforcei um pouco para nadar alguns metros e ir de encontro a ela, naquele instante eu me sentia até mesmo parte de tudo aquilo, como se meu corpo e mente pertencessem ao rio, às águas, à Riverside.

Tirei a rolha que lacrava o interior e li o conteúdo, o texto que a criança que chamamos de destino deixou travessamente para mim.

"No meio do caminho de nossa vida encontrei-me em uma selva tenebrosa cujo caminho reto se era perdido. Ah, dizer como era penosa e dura esta selva selvagem, é tão áspero e forte que em pensar renova-se o medo".

"Analisando por outro ângulo a tristeza das primeiras frases da obra de Dante, fica muito claro a influência de Kabus, o senhor dos pesadelos em sua composição, as palavras que sangram não poderiam ser mais atuais do que na era que vivemos.

Tudo que fazemos é um reflexo dos deuses que vivem dentro da nossa mente, de início fora difícil acreditar que até mesmo as demais mitologias que se tornaram religiões, doutrinas e filosofias fossem canções materializadas em pensamento.

Seria Riverside amaldiçoada por uma loucura coletiva? Ou a terra de onde a verdade finalmente seria desvendada? Em ambos os casos, não havia salvação para a cidade, ou melhor, para o mundo. Basta ver o que acontece ao nosso redor, não precisamos nem mesmo ir muito longe para ver que fomos uma criação errada, munidos de poderes que nem mesmo sabemos como utilizar.

Marido espanca esposa, filho assassina pais, ganância corrompe o mais puro dos seres, destruímos a fauna e a flora, erguemos monumentos para nossa glória, abandonamos pessoas, o amor virou egoísmo, a empatia uma utopia e os sonhos converteram-se em pesadelos.

Quanto da composição original de Mafarki permanece nesta vida desgraçada? Teria a natureza de Kabus se apossado da maior parte da sinfonia de Onírico?

Seja uma ideia original ou uma coleta do fosso do guardião dos devaneios, eu tinha que criar a história final, algo que de fato retrata-se a dolorida revelação, aquilo que temos dificuldades de reconhecer.

O homem possui falhas.

Seja hoje, daqui um ano, dez ou cem, não existe outro fim. Iremos nos destruir, perder cada vez mais o lado humano e dar lugar a besta. Para isto, nos apegamos a conceitos de bem e mal, luz e escuridão, Deus e Lúcifer, buscando justificar a imperfeição de nossa alma. Quando o motivo desta penitência nunca saiu de outro lugar que não seja nossas próprias entranhas.

A sinfonia do juízo finalOnde histórias criam vida. Descubra agora