Judith

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O desespero tomou conta de Judith. No aposento do garoto, a janela arrombada rangia com o vento da madrugada. O capim que preenchia sua cama estava espalhado pelo chão e amortecia o forte cheiro de urina no local.

Absalon não se preocupou em acalentar sua jovem esposa e correu pelo cortiço em busca de ajuda. Logo, seis homens bem-dispostos estavam reunidos no pátio do cortiço munidos de facões e lamparinas que iluminavam suas faces pretas. Judith percebeu o plano do marido e se apressou ao seu encontro, vendo-o montar um velho cavalo de carga cedido por um dos vizinhos.

- Eu vou com você! – ela gritou enquanto corria.

-Não! – ele a repreendeu em alto e bom tom – Fique aqui. Jacob é esperto e pode voltar. Vou até a residência do chefe de polícia.

- Mas...

- Sem mas, mulher! – seus olhos determinados encontraram os da esposa - Eu vou trazer nosso filho de volta, Jud... eu vou!

Judith recua em prantos e assiste o marido e sua pequena milícia sairem disparados rumo ao centro de Montgomery. Sozinha, abraçou a si mesma até que outras mulheres do cortiço viessem a consolar. Entretanto, nem todas estavam complacentes com a situação. Algumas nem disfarçavam ao dar suas críticas próximas a ela.

Judith bem sabia qual era o assunto e por mais que lhe fosse doído admitir, talvez estivessem certos. Ela quis afastar a ideia da cabeça para não culpar Absalon, mas era uma tarefa difícil que requisitava toda sua empatia.

Até poucos anos atrás ela era uma escravizada, tal como Absalon e todos os irmãos de cor. Com o fim da Guerra Civil, os republicanos se empenhavam no projeto de "reconstrução" à sombra do preconceito que não fora derrotado.

O Norte consolidava seu poder sobre o Sul, porém os mais atentos percebiam a rusga interna que acontecia. Havia um grupo extremista no governo que não aceitava a ideia de reunificação sem que ações severas fossem impostas aos Estados Confederados.

Vários coligados da União tomaram lugares públicos no antigo território dos Confederados e regimentos do Exército foram deslocados para manter a ordem e a vigilância. Enquanto alguns confederados perdiam direitos políticos, os afros americanos ganharam o direito ao voto e alguns foram nomeados para cargos importantes, anteriormente considerados elevados para a "raça".

Absalon era um destes. Começou a trabalhar ao lado do promotor Adam D. Johnson e vinha aprendendo o oficio do direito com ele. O preto tinha o dom para organização e era um homem robusto e corajoso. Liderou e protegeu vários irmãos durante a contenda. Foi exatamente essa veia para a justiça que lhe rendeu inimigos.

O maior deles: Solomon L. Mallory. O sujeito era um grande produtor de algodão que se viu a beira da falência com a libertação dos escravizados e as reprimendas políticas da época. Porém resolveu isso de uma maneira bem anacrônica: cedeu porções de terras para as famílias afro americanas em troca de mão-de-obra pouco valorizada. Rumores de maus tratos ainda chegavam aos ouvidos da cidade, mas ninguém tinha coragem de ir contra a mão de ferro de Mallory. Absalon havia tomado as dores desses 'trabalhadores' e criava processos contra o homem. Com algum esforço, conseguiu um mandado de investigação criminal na propriedade Mallory. Mas isso era pouco perante a influência do velho chacal.

Ouve-se ruídos entre os bazares e praças da cidade de que "andou sumindo gente'' nas comunidades pertencentes ao latifundiário. Uns dizem que foi retaliação por terem apoiado Absalon nos processos. Embora as famílias dos desaparecidos demonstrassem profunda preocupação, nenhuma queixa oficial era feita e os sumiços continuavam. Absalon fazia o possível para resolver a questão, mas começou a ser enxotado das casas de quem protegia. E agora, a mazela havia batido na porta de sua família.

Além disso, na mata circundante era relatado a realização de algum culto estranho, onde pessoas com mantos e mascaras estranhas queimavam oferendas diante uma cruz.

Nada além de rumores. Mas uma possibilidade.

Judith afastou estes pensamentos da cachola e fez vigília com as outras mulheres até amanhecer. Orava em silêncio, pedindo a qualquer deus que ouvisse, pela volta de seu filho e marido ao lar.

A Ordem de CaronteOnde histórias criam vida. Descubra agora