VI. Corrupção

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Quando se posicionou perante a Suprema, abriu a navalha. No meio da porta, com a navalha apontada para o chão, inspirou e expirou.

A Suprema sorriu-lhe.

– Saudações – disse uma voz a ecoar dentro da cabeça da própria Lily.

– Saudações?

– Desabotoei a túnica para ti – a Suprema guiou os olhos de Lily para o seu peito. – Será que tens o necessário para salvar os teus amiguinhos da tortura que lhes vou infligir depois de insultarem os meus soldados com uma patética tentativa de fuga? – soltou uma gargalha que ecoou dolorosamente na cabeça da pequena.

Lily levou as mãos aos ouvidos para os tapar e acalmar a dor. Mas não resultou, dado que a Suprema não estava a mexer os lábios, ela estava dentro da sua cabeça.

– Tive de interromper o descanso de rejuvenescimento de alguns deles. Ter sido obrigada a interromper um sono de anos, deixa-me mais zangada do que aquilo que possas imaginar. Eles estavam a meio da sua preparação para o receber. Para receber aquele que tu acordaste! Estou ansiosa por utilizar os rituais de iniciação em ti e ver se és mais um fracasso! – Lily ouviu outra gargalhada, mas mais perturbadora e maldosa que a anterior. – POUSA-A! POUSA A MALDITA NAVALHA!

– NÃO! – lágrimas de angústia desceram-lhe pelo rosto.

– Obedece à tua Suprema! – gritou-lhe.

Lily abanou a cabeça.

– Não! – repetiu.

– AGORA!

Lily não aguentou mais e, num ato de revolta, pegou na navalha e espetou-a no coração da Suprema. Ela afastou-se horrorizada pelo que tinha feito. Porém, o golpe não tinha sido suficiente para a matar e, ao olhar para o golpe, a Suprema irrompeu novamente num riso impetuoso.

Lily sentiu desespero. Aquela criatura horrenda ainda estava viva e sedenta por vingança. Ela arrancou a navalha do coração e cortou-lhe a garganta. Sangue jorrava em grandes quantidades, ensopando a túnica branca. Perante um cenário tão grotesco, Lily só conseguia sentir nojo, perguntando-se se o sangue humano seria tão escuro e viscoso.

Agora, sem a voz da Suprema a ocupar-lhe a atenção, ouviu os gritos de batalha.

– Rory... – lembrou-se com preocupação.

Lily usou então a navalha para cortar a pele da Suprema e retirar o coração com cuidado. Colocou a navalha no bolso dos seus calções e correu com o coração dela entre as mãos.

– Eu consegui! – gritou enquanto descia um dos passadiços.

Os fugitivos redobraram os esforços e abriram caminho para que ela encaixasse o coração na fechadura.

Ao pousá-lo, a porta abriu como que magicamente e os fugitivos saltaram, um atrás do outro. Lily foi em terceiro lugar, puxando Rory pela mão.

Frella e May foram as últimas, seguidas pela branca, que com uma pirueta conseguiu passar pela dezena e meia de brancos que se encontravam entre ela e a escotilha.

– Ainda não acabou! – disse a branca alto, enquanto nadava para chegar à margem.

Os dois amigos agarraram-se a uma rocha com medo que a corrente os arrastasse até à cascata, onde a queda seria fatal.

– Agarrem-se a mim!

A branca puxou os dois e ajudou-os a chegar à margem. Eles arrastaram-se por entre a relva até às árvores e pararam para recuperar o fôlego e torcer as roupas.

– Ainda não acabou – repetiu a branca. – Eles virão atrás de nós.

– E os outros? – questionou Lily.

– Não te preocupes com eles e recompõe-te. Temos que continuar a correr.

"Recompõe-te..." – Ao ouvir estas palavras, Lily sentiu uma dor aguda nas suas costas. Passou a mão no lugar da dor e sentiu uma textura diferente. Ela tinha sentido a mesma textura ao tocar na pele de um branco. "Não pode ser" – pensava. A preocupação que a assombrava foi rapidamente substituída por outra mais urgente. Do lugar onde estavam, viu uma escada de corda ser atirada de uma das plataformas da outra margem.

– Eles vêm aí! – alertou Lily, levantando-se rapidamente e ajudando o seu amigo a levantar-se também. – Para onde vamos? Eles também devem estar a atirar escadas deste lado!

– Por aqui!

Eles correram sem parar, saltando por cima dos ramos partidos e evitando os trilhos.

– Sem barulho – dizia a branca entre dentes.

Os três tentaram, mas os seus cuidados não foram suficientes. Quase fora da floresta, um grupo de brancos cercou-os. Eles mostraram os bastões, ergueram-nos horizontalmente, rodaram-nos e colocaram-nos na vertical. O ritual de início de batalha tinha sido feito.

– Lily! Lembras-te da história que te contei na carroça? Que um branco me tocou e me fez ver coisas? A história era verdade, mas não de todo. A criatura que viste no meio da estrada, ela fez-te algo. Ela irá manter-te acordada até conseguir o que quer de ti. AH! – gritou, procedendo também à realização do ritual.

– O que quer ela de mim?

– Isso tens que ser tu a descobrir. Pensa no que fizeste. Ainda não é tarde!

– O que ela quer? – insistiu.

– O resto do mistério tens que ser tu a descobrir. Se eu te disser mais do que isto, temo que a esperança se perca para ti.

– Como assim? E o Rory?

– Aqui as memórias vão-se, mas os sentimentos ficam! Os sentimentos são a chave que procuras.

– Sentimentos?

A branca estendeu uma das pernas no chão e baixou-se ao nível dos joelhos dos seus oponentes. Colocou o bastão por baixo do braço e fez pressão sobre ele com o outro braço. Rodopiou em torno de si mesma e aplicou um golpe nas pernas dos outros brancos fazendo-os cair para trás. Com esta distração, correu em direção a Lily e, colocando as mãos na cabeça dela, fez a luz apagar-se uma vez mais.

Etéreo: Vila SuspensaOnde histórias criam vida. Descubra agora