➳ CAPÍTULO 2: MEMÓRIA

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          RESPIREI FUNDO ASSIM QUE atravessei as portas duplas da frente. Meu olhar varreu o lugar e pousou sobre um grupo específico de pessoas. No canto direito, próximo ao altar, os músicos seguravam seus instrumentos, perfeitamente posicionados. Jack, Liz e Peter estavam de pé no pequeno palco improvisado quando me aproximei.

          — Achávamos que iria desistir — disse Jack, rindo. Ele era o cara da guitarra. Geralmente, deixava os cabelos pretos bagunçados, vestia sua velha jaqueta de couro e carregava tatuagens sem significados no corpo; era o típico bad-boy do qual todas as mães imploram para que suas filhas e filhos fiquem o mais longe possível.

          — Achava que nunca chegaria o dia em que veria Jack Hamsey de terno e gravata. — rebati, provocando, fazendo com que os outros ali em volta soltassem risinhos. — Parece que nós dois erramos.

          — Na verdade, estou surpreso de você estar usando um vestido — Jack comentou, ainda utilizando seu tom humorístico, camuflando suas alfinetadas preconceituosas.

         — Talvez no próximo casamento eu use um colete e gravata — comentei, sem expressão.

          — Não dê ouvidos a ele, Lirah. — interveio Liz, deixando amostra seus caninos levemente afiados ao esboçar um sorriso. Ela atingiu o topo da cabeça de Jack com uma de suas baquetas e fitou-o com a testa franzida. — Ele vai se comportar agora, não é mesmo? — acrescentou ela, enfatizando as três últimas palavras.

          Liz Hamsey era uma de minhas melhores amigas. Seu cabelo colorido estava preso em um elegante coque moderno, onde os cachos violeta desciam em cascata desde o topo de sua cabeça até a altura dos ombros. O vestido lilás, além de realçar seus olhos e combinar com o cabelo, refletia sua aura espiritual, ou era assim que ela gostava de pensar.

          — Está falando igual a mamãe, Liz... — cantarolou Jack, desafiando a irmã mais nova. — Se continuar assim, vai acabar ficando encalhada para sempre.

          Liz revirou os olhos, estava prestes a responder às provocações de Jack quando outra pessoa se aproximou de nós. Peter se encolheu assim que palavras foram enunciadas e eu não precisei me virar para saber de quem aquela voz era.

          — Todos os convidados já chegaram, está tudo pronto... — disse Francesca, lançando para nós um olhar desesperado. — Ela está pronta. Vocês precisam começar agora. — acrescentou. Ela sempre ficava nervosa em situações que envolviam muitas pessoas. Aquele era seu estado normal. — Tudo bem, está tudo bem. Respira. Você cosnegue fazer isso.

          — Eu sei que sim — respondi, sorrindo. Eu não estava mais tão nervosa.

          — Sim. Eu sei. — ela me encarou com a sobrancelha arqueada, como se não houvesse notado minha presença até então. — Estava falando comigo. Nem tudo gira em torno de você, Lirah.

          Bastou um olhar entre eu e Georgina para que começássemos a rir. Não era uma risada de felicidade, mas a situação estava se tornando tão trágica que se transformou em comédia.

          — Está bem — disse —, vamos começar.

          Todos já estavam posicionados. Os convidados, o juíz de paz, os músicos, as madrinhas e os padrinhos, todos estavam ali. Liz deu a deixa, Jack começou a tocar, Peter acompanhou e logo minha voz preencheu a capela.

          Naquele instante, senti tudo ao meu redor parar. Dizem que quando uma onda de emoção nos atinge, somos teletransportados para um lugar especial, onde o espaço-tempo não existe. A turbulência dura por milésimos de tempo, tão curto que é impossível de calcular, tão curto que chega a se tornar insignificante. No entanto, naquele momento, eu viajei para três meses atrás, sabia exatamente qual dia era e pude ouvir as vozes, em perfeita sintonia, circundando-me como se eu estivesse girando.

          A memória me atingiu como um soco. As luzes se apagaram, o falatório diminuiu e eu ouvi gotículas de um líquido qualquer cair, ritmicamente, conferindo um dos sons mais irritantes que já ouvi em toda a minha vida. Ao abrir os olhos, senti a base da minha cabeça doer. Sabia que estava repousada sobre uma superfície macia, pois conseguia senti-la sob meu corpo. A luz invadiu o quarto, atravessando as grossas cortinas e a janela semi-aberta.

          Havia branco. Tudo ao redor era branco ou azul-claro. Até mesmo a parede, o piso ou os lençóis finos. Girei minha cabeça para o lado, sentindo incômodo nos olhos. Ninguém precisa de tanta luz, afinal. Georgina estava parada, em pé, ao meu lado. Lágrimas molhavam suas bochechas e eu sabia que meu segredo já não era mais um segredo.

          — Desapareça — disse, e ela recuou alguns passos.

          — Disseram que você vai precisar ficar sob observação por mais alguns dias, foi o que eu ouvi... — disse ela, com a voz embargada, ao notar que eu havia acordado. 

          — Sim. — murmurei. — Eu sei.

          — Você já sabe, não é? — ela suspirou. — Eles ainda não têm certeza, então farão mais alguns testes antes... antes de confirmar — naquele ponto, tornou-se impossível discernir qualquer palavra. Ela apenas se aproximou e segurou minha mão. 

          — Sim — eu disse e esbocei o melhor sorriso que eu consegui com a quantidade de forças que me restavam —, eu sei... eu... sei. — seu olhar se tornou distante e assustado, como se não acreditasse em minhas palavras.  — Fui diagnosticada com melanoma há duas semanas atrás, um pouco depois do seu acidente... O plano é manter isso em segredo até eu ter certeza se darei início ao tratamento ou não.

          Um soluço de choro ecoou pelo quarto. E eu já não sabia se era meu ou não.

          — Isso é uma grande mentira — ela disse —, você não vai contar. Se não tivesse escolha, também não teria me contado.

          — Provavelmente não, mas tecnicamente eu não contei nada. — disse e, naquele momento, ouvi uma música curta invadir o ambiente. Georgina zanzou pelo quarto do hospital e encontrou o celular repousando sobre a mesinha ao lado da cama. Meus olhos a seguiram e eu estreitei os olhos para conseguir ler o que aparecia no visor.

          — É Lorena. — disse ela após checar a notificação. — Contou para ela?

          — Você sabe que não. — suspirei. — O casamento é em alguns meses. Não me olhe desse jeito. Não preciso assustá-la agora. — desviei o olhar em sua direção e encarei-a com firmeza. — Não me olhe desse jeito. Ela merece ser feliz. E posso dar isso a ela... ao menos, posso lhe dar alguns meses de felicidade.

          — Não estou olhando de jeito nenhum, Lirah. Para todos os efeitos, eu nem estou aqui.


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