Um Dia de Chuva em SP

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Estou na frente de um espelho. Compromisso importante para aquele que a tanto tempo deixa de ter contato físico, digamos, mais permissivo, tipo um encontro. Já era remoto quando recebi um carinho! Portanto, tudo em que consigo pensar é em ver o rosto dela, trocar palavras fáceis e beijar aqueles lábios cor cereja. E nessa cidade megalópole posso encontrar locais que vão fascinar aquela excêntrica garota, se o que ela procura é estímulos. Vamos ir ao MIS, ver a exposição do Da Vinci, depois andar pela estação da Luz, que lembra a Inglaterra Vitoriana, vamos ver um trabalho arquitetônico britânico onde agora se passa carros por baixo e os bate carteiras por cima. Analisar cada brasão nesses rebuscados recintos. Eu quero a saciar intelectualmente, vide que ela me deu um ultimato, depois de dar o cano nela pelo menos nos dois últimos encontros. Ela me dissera uma vez, "meu tempo só destino a pessoas estimulantes, atrasos são pouco estimulantes".

Porém hoje, com esse lindo céu acinzentado, tenho que impressionar a garota. Comprei uma gravata magenta neutra outro dia, até fiz a tentativa de combinar as cores das roupas. Fui até o ponto para pegar minha Mercedes, com meu motorista particular, e vou até a porta da casa dela, CNH cara demais, melhor terceirizar. Começa a garoar e penso em como isso é romântico. Muito romântico. Meu humor estava ótimo e o clima estava me convencendo cada vez mais, até sai com uma tolerância, para assim ser possível chegar sem problemas maiores. Me sentei no banco mais a porta, voltado para o corredor, evitando de tocar o encardido poste amarelo de sustento. Me equilíbrio quase caindo algumas vezes e reteso meus pés mais a frente e me espreguiço, a viajem seria ligeiramente longa. O suficiente para que as pessoas queiram sentar mais a janela. Quando meus olhos se encontram com uma mulher que passava agora pela catraca eles sibilam e levemente lacrimejam como que para me alertar de piscar os olhos. Estava na presença de uma moça de beleza inquestionável. Cabelos pretos, uma blusa branca básica, uma jaqueta vermelha com golas simples. Uma calça jeans larga o suficiente para parecer confortável. Tinha um estilo investido ali, o cabelo preso deixava uns fios mais a orelha livres a sorte da gravidade, que era a cereja em cima do bolo para mim. Quando encolho minhas pernas para ela passar tento olhar em outra direção, porque minhas sinapses saturariam se a olhasse mais um instante, e evito de tocar nela, como para não borrar uma pintura recém trabalhada. Percebo minha apoteose perante ela e acho que ela percebe meu esforço ao ponto de começar um diálogo comigo:

- Desculpa se esbarrei em você.

A voz dela parecia veludo, igual a de uma cantora pop star dessas séries mais antigas da Disney. E seus olhos investem mais uma investigação minuciosa em meu ser a ponto de estender seu comentário - Você está muito bem vestido aliás.

Eu gaguejo e me lembro de meus objetivos, me recompondo logo. - Estou indo ser jurado de um caso importante, soube daqueles dois caras que iniciaram um roubo à domicílio e que chegaram a capotar um carro em plena Faria Lima? Falo com o rosto forçadamente sério, talvez cômico demais para minha seriedade, ou sério demais para ser cômico. Ela saca rápido, era mais sagaz que eu.

- Ah sim, o roubo que ocorreu hoje, melhor, o furto...

- Você não acha que o sistema judicial brasileiro é eficaz?

A cara dela diz tudo. Dali em diante tivemos uma conversa agradável, trocamos palavras fáceis, tocamos em assuntos mais sérios, ela sempre com um tom sarcástico perante a que eu falava. Ela me disse que o nome dela é Cham, eu falo que meu nome é Tom. Ela era divertida, uma companhia agradável, mesmo passando um censo de urgência. Depois da minha fraca tentativa de fazer piada de carros híbridos, em algum momento ela fala que já me conhecia, ela sendo uma aluna de uma turma anterior a minha, da última escola que estudei, a 5 anos atrás. Ela me disse que tinha um crush em mim. Quem diria... Quando chegamos a região de Anhangabaú recobro minha consciência com uma pergunta fadada ao escárnio:

- Me pegou. Você me parece familiar, você é alguém famosa?
- Claro, e estou pegando o ônibus público porque SP é conhecida por ter transporte acessível e de qualidade...
- São Paulo minha querida, assim como Paris é a capital do amor, da moda e do gourmet, é a cidade de carros, motos e caminhões, foi arranjada para ser...
- Eu acho que deveria ser de barcos, olha aquela lagoa ali em frente.

Ela não parecia desconfortável a princípio perante nosso infortúnio recém descoberto, porém previsível, logo se mostrando um equívoco meu. Uma enorme poça d'água, uma resistência perante o fluxo até fluído para um dia de chuva em São Paulo. Evidentemente o ônibus parou um pouco antes, no farol amarelo que piscava.

A partir dali, depois de dito o que foi dito, fiquei um pouco desconfortável. Tinha o meu encontro, que evidentemente não chegaria a tempo. E tinha uma garota que, se não fosse muito lerdo, acharia que ela tinha um remoto interesse romântico em mim. Ela antes, pensando melhor, estava levemente corada, e suas mãos pareciam ter uma recém descoberta liberdade, agora estando mais pálida e estática. Eu estava desconfortável com isso e agora indiferente. Meu grande bloqueio era a decepção que viria com o atraso. Ela percebia cada vez mais minha irritação, que apenas aumentava, como a opacidade do vidro que agora escorria gotículas de água da respiração dos que se encontravam dentro daquela gaiola. Todas as janelas fechadas e o calor era reinante e o desconforto crescia exponencialmente. Recebo uma mensagem em caixa alta.

"TOM, DESMARCADO. Da próxima vez marca um horário mais fácil e acessível para você, meu querido. Queria muito ir ao pub com meus amigos, então estou indo sem você, beijos." Enquanto lia percebo que esbarram em minha perna, mas estava muito desconfortável àquela altura. Quando levanto meu olhar da tela de meu Smartphone, olho para o banco ao meu lado. Vazio, depois minha visão naturalmente acompanha para as portas e depois afora do ônibus. Cham atravessava a avenida, aparentemente rumava para o estacionamento de um Supermercado, ou só mercado mesmo. Saio do ônibus, piso em cinco poças no caminho até me deparar em um estacionamento. Lá vejo ela entrando no que parecia ser o carro de um prestador de serviço da Uber. Tento me esconder atrás de um carro perto, para ela não perceber o quanto sou patético.

Levanto meu olhar para aquele céu cinzento, para tentar relevar a sensação de umidade em meus pés. Como parecia romântico. Tento voltar para ver se consigo ainda pegar o ônibus que a pouco tempo larguei. Percebo que o nível d'água baixou discretamente e era possível automóveis de grande porte atravessar agora. E eu desistir de pegar o ônibus e entrar na lanchonete fast-food mais perto. As portas de entrada se fecham, e eu pouco me importo. Olho para nossos bancos vazios que agora eram ocupados.

Como não havia percebido? Havia uns números na janela. Estava ao contrário então não entendi de cara, e o ônibus como que para atrapalhar começou a se mover vagarosamente. Eu acompanho aquele ritmo lento. Até... Pluft! Caí do nível alto da plataforma até uma lamacenta água. Quem sabe a que germes fui exposto ali. Peguei alguns poucos números, inúteis perante as combinações possíveis que existiam. Me levanto e me recomponho. Me sento no banco da plataforma, tento de forma pouco eficaz me desfazer de toda aquela água. Olho novamente para o céu cinzento e penso comigo mesmo "São Paulo, só você para transformar um problema grave de planejamento urbano em uma quase história de amor..."

FIM

As imagens aqui dispostas são referentes ao filme A Rainy Day in New York e estão disponíveis nos seguintes URLs:
<https://veja.abril.com.br/blog/isabela-boscov/novo-filme-de-woody-allen-e-tempestade-em-copo-dagua/?epik=dj0yJnU9TjJaSWlPNjlLSnJTaVFzemVCY2NXRm9hcmZmSkRwdEQmbj05Sm9xVUFkSXFhSFQxalVVc3RoSEpnJm09MyZ0PUFBQUFBRjMwRkZj>

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