Chovia muito. As gotas indelevelmente acertavam todas as pessoas, os jogados ao chão a própria sorte e os com casacos caros e grossos de gola levantada para aguentar aquela ventania. Eu era um intermédio entre esses dois mundos, não abastado para fechar os olhos para degradação humana e não sem meios a ponto de ter que viver a sorte de outras pessoas. Ou seja, eu era caótico, não conseguia aproveitar o que se postava em minha frente por receio, ou por covardia. Estava ali fora depois de entregar uns documentos para tirar o passaporte. Em uma rua bastante movimentada de São Paulo, na região de Pinheiros. Um lugar onde o que apenas se viam eram os barzinhos onde pessoas aproveitavam e regozijavam de privilégios de poucos. Estava chovendo torrencialmente a ponto de que não conseguiria andar nem um palmo a minha frente. Tive que me abrigar em um desses barzinhos.
Eu entro em um bem simpático. Com um deck de madeira mais a frente e luzes que imitavam o amarelado das lâmpadas de tungstênio. Entrei desprentesiosamente mas meus olhos me enganaram. Sento em uma mesa que me abriga perto de uma beleza. Uma mulher que tomava despretensiosamente seu drink no balcão. Um drink que não identificaria nem se quisesse. Tento não olhar para ela, ela era uma daquelas musas em que Da Vinci daria horas para fracassar em reproduzir. Ela me nota. Como eu queria que ela não me notasse, não me comportando como um sarnento na frente de giratórios frangos. Levanto para tentar me desculpar com a moça:
- Eu notei que fiquei te encarando peço desculpas, não queria paquerar nem nada...
- Talvez queria a ponto de fazer sem perceber. Desista meu jovem, eu acho que você não vai conseguir ser interessante. Quem disse que nós daríamos certo?
Ela aponta para minhas roupas. Meu tênis surrado de quilômetros andados, minha jaqueta quase aberta mais aos cotovelos, meu jeans folgado de anos de uso.
- Equívoco de meu subconsciente madame...
- Não é mesmo uma forma de me paquerar com toda essa atitude retraída?
Um sujeito vem mais atrás, uma antítese a minha pessoa, pelo menos fisicamente. E a sua postura me intimida.
- Senhorita, esse sujeito está te incomodando? O sorriso dele parecia presunçoso.
Ela olha para mim, não de uma forma de entrar no escárnio dele, mas me estimulando a defender a sua honra, ou seria a minha honra? Uma ideia me sobreveio.
- Então, conhece a startup que administra as bicicletas do Banco Itaú? Eu sou um dos programadores do aplicativo... As palavras saem naturalmente de minha boca, com bastante pretensão. O sujeito se acovarda, aparentemente sua pompa era superficial, para minha sorte eu acredito.
- Caramba, então você é bem abastado senhor programador? Fala a mulher de um jeito sensual, valorizando cada palavra dita, mesmo que eu não acreditasse nelas.
- Nem um pouco... Quebrou o encanto?
- Longe disso, você tem a sorte de estar sendo narrado, melhor, escrito, sustentado em palavras, por um sujeito com suas mesmas características, sabe tudo isso é uma história ou algo do tipo, por isso você tem uma chance de se dar bem agora.
- Você está questionando minha independência? Meu livre arbítrio? Por que quando eu pego essa latinha eu sinto as gotas escorrerem em minha pele? Por que sinto meus pulmões se encherem de ar quando inspiro? E meu coração encher de sentimentos quando a fragrância de seu doce perfume é arrastado junto com o ar que respiro. Como ouço o ranger das tábuas de madeira aos meus pés?
- Até onde eu sei Descartes não escreveu sinto logo existo. Me prove que existe de verdade...
Como eu provaria a ela que existo de verdade? Abriria meu crânio e mostraria meus pensamentos? Mais uma ideia sobreveio em minha mente. E se como nos contos de fada tudo se resolvesse com um beijo? Chego mais perto dela. Eu acho que ela percebe meu plano mirabolante.
- Eu acho que você não vai dar conta gatão. Segunda chance para desistir...
Eu penso. Logo existo? Não com certeza correria o risco, seja lá qual for, mesmo que ela tiver um namorado bombado atrás de mim que me arrancará de seus lábios.
- Seria um risco eu desistir de te beijar...
Eu me aproximo mais. O cheiro dela não é melhor que sentir a maciez de sua pele. Nossos lábios quase se encostam, ela já de olhos serrados. Algo me arranca do quase encostar de nossos lábios. Tudo o que veio depois daquele instante mais do que provou que eu existo, e que existir dói pra caramba.FIM
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Mais um Conto Qualquer e Outras Histórias
Short StoryUma coletânea de contos sobre o cotidiano e outras coisas que, bom, não são referentes ao cotidiano. Relacionamentos em suas diversas manifestações em curtas que podem - e espero que possam - ser relevantes. Sobre as outras histórias supracitadas: E...