O Kronos

25 3 0
                                    

Henry finalmente começava a entender o caminho que deveria trilhar.
Havia perdido tanto tempo em suas aventuras anteriores, e sua memória começava a voltar.
Finalmente, decidiu voltar ao passado.
(Aliás, foi uma decisão bastante demorada até.)
Fechou os olhos, e quando os abriu novamente, estava no mesmo lugar onde tudo começou.
O oceano raso, o céu profundo, as sombras espessas e a luz que não brilha das estrelas.
Tudo ali era uma contradição, e realmente deveria ser.
Assim como a cabeça de Henry durante sua vida, o limbo era um lugar completamente caótico, e carregado de dor e sofrimento.
Finalmente conseguiu materializar aquela realidade novamente, e encontrava-se deitado em sua canoa.
Ele precisava decidir.
Precisava se aprofundar mais em tudo, deixar o medo de lado, e explorar seus próprios sentimentos e memórias.
Então saiu da canoa, sentou-se na água, fechou os olhos, e pensou em si.
Em sua vida.
E em suas atitudes.

As águas negras começaram a subir e encobrir Henry, mas dessa vez ele não sentiu nenhuma dor, ou qualquer tipo de sofrimento.
E também não se afogou.
Henry ignorou sua existência naquele momento, portanto ele era apenas mais uma manifestação sutil no vazio do universo.
Henry mergulhou no firmamento negro.
E atravessou a realidade, tendo acesso aos tecidos do mundo.

Henry estava em uma espécie de templo em ruínas.
Paredes parcialmente repartidas, manchadas, e com partes do revestimento arrancado formavam um círculo ao redor do garoto.
Dezenas e dezenas de colunas negras sustentavam os restos de uma abóbada cinzenta, que era como que de cristal, enfeitada com todos os astros do céu.
O chão, era feito de ladrilhos verdes, numa tonalidade escura.
Na frente de cada uma das colunas, havia uma área ressaltada em formato de círculo.
E sobre cada círculo estava um bocal em forma de hexagrama, feito de bronze.
Desse bocal, saia um líquido cristalino semelhante a água, e nele estavam suspensas milhões e milhões de estrelas, nebulosas, galáxias e planetas.
Eram as fontes do rio Cosmium, o rio do universo.
Suas águas subiam por cada uma das colunas, desafiando qualquer noção de gravidade, e alimentavam a abóbada cósmica.
Henry estava em um local onde o chão era mais elevado, e formava uma estrela de seis pontas.
Henry estava próximo ao centro, de frente para uma espécie de altar negro, feito de obsidiana e ônix.
Este altar era do mesmo formato de estrela, e em cada uma de suas pontas havia uma estalagmite de cristal negro, e todas inclinadas para o meio.
Entre suas pontas, estava um pequeno globo feito de cristal branco, e era a partir dali que se tinha acesso as linhas tênues e frágeis da existência.

Henry se aproximou, e uma voz o guiou em tudo que deveria fazer.
Seguindo as instruções que recebeu, Henry tocou o globo de cristal branco, fazendo com que uma enorme rede infinita de linhas se projetasse por todo o templo.
Eram como teias de aranha, espalhadas por todo lado, e uma delas, brilhava intensamente com uma luz branca cegante e esplêndida.
Henry desceu os degraus do hexagrama onde estava, e andou pela água negra do oceano do vácuo.
Caminhou lentamente, até que chegou próximo a linha brilhante.
Henry tocou-a, e a partir dela toda a teia de linhas ao redor do templo foi refeita, apenas com as linhas que existiam dentro daquela própria.
Então henry puxou a primeira das linhas até o centro do templo, e a amarrou no altar negro.
Em seguida sentou-se, fechou os olhos, e reviveu sua linha do tempo enquanto ainda estava vivo.

Voltou aos seus quinze anos, um ano antes do fim de sua vida.
Estava num lugar que soava familiar, era a casa de seu amigo Guilherme.
E Henry sabia o que havia acontecido ali.
Acontece que neste dia específico, Henry sentia-se sozinho, e estava sentado na sala com seus pais, apenas olhando para o chão de porcelanato polido da casa, e pensando em absolutamente nada.
- Não acha que ele fica muito em casa ? - Perguntou sua mãe, direcionando a pergunta para o pai de Henry, que respondeu em seguida:
- Realmente, esse garoto passa tempo demais trancado aqui. - E continuou:
- Filho, que tal sair com algum amigo seu, eu te dou dinheiro para você ir ao centro lanchar ou algo do tipo.

Henry apenas concordou com a ideia para agradar seus pais, pois não tinha amigo algum para sair.
Então começou a revirar a lista de amigos online no Facebook, para talvez encontrar algum conhecido de anos atrás e tentar sair de casa.
Após muita procura, encontrou um tal de Guilherme.
Mandou um oi, e resolveram matar a saudade saindo juntos naquela noite.
Henry vestiu sua melhor roupa, pegou cinquenta reais com seus pais, e foi buscar o garoto que morava ali perto, para pegarem o ônibus juntos.
Após conversarem bastante durante a viagem, chegaram ao centro, e se dirigiram ao centro comercial mais famoso e frequentado entre os jovens, a Estação Mall.
Não chamaria aquilo de shopping, embora seja isso que esteja escrito sob a fachada.
Era um estacionamento gigante e retangular, com lojas dos dois lados e uma pequena praça de alimentação fechada.
Os dois sentaram-se, comeram seus lanches do burguer king, e após rolar certo clima, resolveram ir para a casa de Guilherme.
Chegando lá, acordaram de fazer sexo.
Começaram a tirar a roupa, mas Henry, que sempre se sentiu inseguro com seu corpo (embora ele fosse considerado quase perfeito para os padrões de beleza impostos na nossa sociedade) se recusou a se despir.
Aí, começa parte do pesadelo.
Guilherme deita em cima de Henry, e tira suas roupas a força, e embora o pobre garoto tente se defender, não tem força devido ao fato de ser três anos mais novo, e ter um porte físico muito mais fraco.
Guilherme forçou-o por horas, e Henry simplesmente desistiu após perceber que seu esforço era inútil.
Apenas afundou o rosto no travesseiro, e se afogou em suas lágrimas de dor (todos os tipos de dor que se pode sentir).
Guilherme havia machucado henry violentamente, tanto fisicamente quanto emocionalmente, e aquilo foi um fator determinante para seu suicídio.
Ao mesmo tempo, uma série de eventos horríveis e outros extremamente bons passaram diante do garoto, que praticamente reviu toda a sua vida através das linhas do Kronos, o pequeno globo que Henry havia ativado no altar.
Henry lembrou se do abuso doméstico verbal que sofreu a vida toda, mas lembrou se de sua avó Marta, que sempre o aconselhou e esteve de braços abertos para apoiá-lo em tudo.
Henry lembrou-se de seus melhores amigos: Ana Julia, Herbert Tereski, Nicolas Felix, Ronald Alves, Felipe Lazzarotto, Erik Bueno, Gabriel Voi, e tantos outros que a lista passava facilmente dos 100 nomes...

A principal questão nisso tudo, é que o trauma causado por coisas ruins as vezes parece ofuscar qualquer coisa boa que já tenha ocorrido conosco, mas não deveria ser assim.
Nossos problemas são como quando se coloca um objeto sob a luz do sol na calçada.
A sombra projetada acaba por muitas das vezes, sendo muito maior do que o objeto realmente é, e com os problemas da vida acontece o mesmo.
Henry sofreu um estupro, agressões físicas de amigos da escola, assédio sexual por mais de 40 garotos enquanto estudava no adventista, era tratado como lixo por seus pais, e centenas de pessoas o abandonaram.
Isso tudo sufocou e destroçou a mente de um garoto de apenas dezesseis anos, mas quando olhamos pelo lado otimista, Henry cresceu com saúde, sempre teve pouquíssimos, mas verdadeiros amigos ao seu lado.
Nunca lhe faltou amor, pois nos piores momentos sempre entrava em contato com alguém desconhecido e se tornava amigo daquela pessoa.
Henry viveu mais momentos felizes na vida do que tristes, e mesmo que esses problemas fossem pesados e difíceis de se lidar, Henry não deveria ter se prendido tanto a eles, mas lutado para superar.
Henry deixou de viver por dar importância apenas a sombra de seus traumas, sendo que o tamanho e o peso real desses acontecimentos não deveria ser suficiente para matar o garoto.
A culpa não é de Henry, afinal de contas ninguém consegue lidar com nada sozinho, e a culpa não é das pessoas ao seu redor durante a vida, pois ninguém é preparado para ajudar pessoas nesse estado.
Mas tudo isso pode ser mudado quando uma história é contada, quando uma experiência é compartilhada, e quando há pessoas dispostas a ler e entender o caos que se passa na mente de um suicida.

Henry sentou-se após isso tudo, e como todas as outras vezes adormeceu.
Quando acordou, recordava-se de tudo que havia acontecido, tanto durante a vida, quando durante a morte, e a sua frente estava uma passarela branca, extremamente longa, de modo que não se podia ver o final, e centenas de tipos de flores diferentes cresciam e a adornavam durante o caminho.
A passarela era tão larga que havia árvores frutíferas crescendo durante o caminho, e tudo aquilo era lindo.

Henry atravessou aquela passarela, e seu comprimento havia sido pensado e medido, para que ao final da travessia, Henry tivesse tido tempo para pensar em cada acontecimento de sua vida, desde ver formigas andando e carregando folhas quando era uma criança, até o dia em que beijou um garoto pela primeira vez.
Henry pensou e calculou tudo, e chegou à conclusão de que valia a pena viver.

A PassarelaOnde histórias criam vida. Descubra agora