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Por um milésimo de segundo é como se tudo ao meu redor tivesse congelado. Ouvi a batida frenética do meu coração e então o coro de "ó" e, por incrível que pareça, ufas que os convidados soltaram. Olhei para a minha mãe e um sorriso discreto estampava o seu rosto. Ela piscou e indicou João com a cabeça.

— Lu... — João começa, mas o interrompo.

— Nem gaste saliva. A minha resposta é não. No. Ne pa. Nicht — repito em outras línguas.

Luiz e eu tínhamos a mania de aprender palavras em outras línguas, apenas para ficar atormentando os meus irmãos fingindo que tínhamos uma língua própria.

— Senhorita Luíza... — O coitado do padre me olha incrédulo, assim como os convidados.

— A minha resposta é não. Me recuso a casar com esse canalha. — Viro-me de frente para os convidados e eles me olham atentos. — Esse homem aqui é um verme e me traiu várias vezes.

As pessoas ficam em polvorosa e os cochichos começam.

— Luíza, eu te amo. Do que você está falando? — João pergunta desesperado.

— Eu recebi fotos suas com várias mulheres. Fotos dos últimos meses.

— É montagem — diz rapidamente, mas seus olhos entregam a mentira. — Isso é intriga, querem nos separar.

— Cala a boca, João. Eu já fui trouxa demais, agora chega.

João tenta segurar o meu braço quando me afasto.

— O casamento foi cancelado, mas fiquem à vontade para curtir a festa, afinal é pecado desperdiçar comida — digo para os convidados.

Seguro o meu vestido com as mãos e apresso o passo em direção à saída. Estou a ponto de explodir, preciso sair daqui o mais rápido possível.

— Luluzinha... — João chama, vindo atrás de mim.

— Não me chama desse apelido ridículo — berro. — A única coisa no diminutivo que eu tinha era o pau do meu noivo.

Ele me olha assustado e ouço um coro de risadas.

Viro-me novamente e me ponho a correr. Quando olho para trás para ver se ele está me seguindo, Luiz o está segurando, com cara de poucos amigos.

Melhor assim.

Começo a correr sem me importar com nada nem ninguém. A minha família sabe que preciso ficar sozinha agora e vão me deixar lamber as feridas no meu canto para depois me dar colo.

Agora que fiz o que precisava, lágrimas banham a minha face e minha visão se torna turva. O vento bate forte contra a minha pele e então sinto o impacto de algo contra o meu corpo.

Sinto dor quando a minha bunda bate com força no chão da calçada, então o meu rosto molhado se torna babado. Isso mesmo, babado. Um enorme cachorro está praticamente em cima de mim, lambendo o meu rosto todo. É tão nojento, mas acho que fiquei louca de vez porque ao invés de gritar e brigar com o animal, eu começo a rir.

Bem a minha cara ter um ataque de risos numa situação como essas.

— Ei... Amigão... Ca... Calma... — tento dizer em meio às risadas, mas ele não me escuta.

Ele late e volta a me lamber, como se me lamber toda o deixasse feliz da vida. Pelo menos alguém está tendo um ótimo dia.

Uso os braços para tentar acalmar o cachorro, mas ele acha que estou brincando e começa a pular, acho que o fato de eu estar em meio a um ataque de risos não está ajudando muito.

Então, assim como chegou, o cachorro é retirado de cima de mim e eu continuo deitada no chão, rindo que nem uma tapada.

— Tonta, para trás. — Tonta sou eu? Mas ele nem conhece. — Moça, você está bem? — Sinto mãos em mim assim que sua voz atravessa os meus ouvidos.

Ainda estou rindo quando afirmo desajeitadamente com a cabeça — deve ter parecido mais com um ataque epiléptico do que um sim — e abro os olhos para ver quem fala comigo.

Olhos preocupados me encaram e não sei se ver que estou rindo que nem doida o deixa mais aliviado ou preocupado.

Tento segurar as risadas que querem continuar irrompendo pela minha boca e pareço que estou me afogando.

Seria cômico se não fosse trágico.

— Vem, deixa eu te ajudar a levantar.

O homem pega na minha mão e puxa-me para cima, o meu corpo ainda dá alguns solavancos e algumas risadas escapam.

— Droga! — Risadas. — Eu... não... consigo... — Mais risadas. — Parar de rir.

Ele segura a minha mão e uma expressão confusa toma conta do seu rosto.

— Você tem certeza que está bem? Peço desculpas, não sei o que deu no Tonta — diz e olha para o animal sentado ao meu lado, agora com cara de culpado. Acho que se ele pudesse falar estaria me pedindo desculpa.

Puxo uma respiração profunda e tento pensar em algo triste para cessar esse ataque. Galhos se formam na minha mente e me lembro de que estou nessa situação por causa dos vários que enfeitam a minha cabeça. Isso ajuda a me controlar imediatamente e a raiva me domina. Melhor que lágrimas.

— Tonta é ela? — pergunto.

— É ele — o homem me corrige. — Ele era da minha sobrinha e ela colocou o nome de Tonta, agora ele só atende por esse nome.

— Ah...

— Sei que já perguntei, mas você está bem mesmo?

A sua expressão é calma e não sei como ele não está olhando-me como se eu fosse uma perfeita maluca.

— Minha bunda dói um pouco, mas nada demais, fica calmo.

— Espero...

Ele começa a falar, então ouço a voz do João chamando o meu nome.

— Droga! Preciso correr.

Mal termino de dizer e meu corpo se põe em movimento. Eu só não tinha percebido que o homem ainda segurava a minha mão e quando dei impulso ele veio junto.

— Ei, o que aconteceu? — questiona confuso.

— Preciso sair daqui o meu noivo traíra está vindo atrás de mim. Estou bem, não se preocupe, o Tonta não me machucou — digo rápido demais.

"Luíza"

Ouço ao longe e aperto o passo.

Sinto um aperto na minha mão e percebo que o homem ainda a segura e acompanha os meus passos, com o Tonta a tiracolo.

Nossos olhos se encontram e ele sorri.

— Acho melhor a gente correr ou ele vai nos alcançar — ele diz e puxa minha mão para frente antes de começar a correr.

Não penso duas vezes e coloco minhas pernas em movimento.

O homem não solta minha mão enquanto corremos que nem loucos pelas ruas, junto com um cachorro.

Parece até cena de livros. 

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