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Corremos uns quinze quilômetros, pelo menos meu corpo acha isso, já estou ofegante e meu pulmão queima. Até faço alguns exercícios, mas digamos que correr está nos meus planos apenas quando o ônibus está saindo e preciso alcançá-lo, ou talvez quando o cara da pizza chega e corro para receber, fora isso, dispenso.

Não ouço mais a voz do João, acho que ele desistiu.

— A... Acho que... que conseguimos — comento ofegante e paro de repente, quase derrubando o meu companheiro de fuga igual quando comecei a correr.

O homem não diz nada, apenas olha para trás e confere se João não está por perto.

Inclino o meu corpo para frente e encosto as mãos nos joelhos. Preciso regular minha respiração.

Me pergunto como alguém pode correr por prazer? Não acho isso imaginável.

Sinto uma mão nas minhas costas e levanto a cabeça rapidamente. O meu parceiro de corrida tem um meio sorriso no rosto.

— Você não é muito de correr, não é mesmo?

— Assim... — Penso em mentir, mas de que vai adiantar. Acho que o meu estado diz tudo. — Às vezes, quando perco a hora e preciso correr para não perder o ônibus.

Ele ri e balança a cabeça.

— Foi o que pensei.

Tonta dá um latido, como se risse de mim também e depois para o meu lado.

Endireito a minha posição e encosto em uma árvore. Observo o homem à minha frente, seu corpo é magro, mas tem músculos, o cabelo castanho-claro está meio bagunçado e sua pele clara corada pela corrida.

— Meu nome é Luíza. — Estendo a mão para o desconhecido.

— Prazer, Luíza, sou o Rafael — ele responde e pega a minha mão em um aperto firme. Um sorriso amplo embeleza o seu rosto. — O Tonta você já conhece.

— Acho que já posso dizer que somos íntimos — brinco.

Rafael solta a minha mão, mas continua me encarando, um silêncio constrangedor se instala e não sei muito bem o que fazer a partir de agora.

— Obrigada por... — Pelo que? Por correr que nem um doido de mãos dadas comigo? — Por isso, por...

— Eu entendi — completa. — Não precisa agradecer, o Tonta atrapalhou a sua fuga, então nada mais justo que o dono dele te ajudar.

— Mesmo assim, obrigada mesmo.

Ele assente com a cabeça e Tonta passa a cabeça pela barra do meu vestido, querendo atenção. Aliso sua cabeça e ele solta um gemido de satisfação.

— Luíza — Rafael chama e volto minha atenção para ele —, a minha casa fica na próxima quadra, se quiser tomar uma água e descansar um pouco.

Uma garrafa de água geladinha agora seria perfeito, mas sei que ele está me convidando apenas por educação e não quero atrapalhar mais do que já atrapalhei.

— Obrigada, mas...

— Luíza, está um calor infernal, você está com um vestido pesado e acaba de correr duas quadras. Não precisa se fazer de rogada. Eu sei que está morrendo de sede

"Será que duas quadras têm quinze quilômetros?"

— Na verdade, estou, mas não quero atrapalhar. E outra, eu nem te conheço.

Na hora desencosto da árvore e encaro Rafael com um ar desconfiado. E se ele for um psicopata? Quem em sã consciência sai correndo com alguém que nunca viu na vida e depois a convida para a sua casa. E se eu fosse uma psicopata?

— Eu não sou um assassino, bandido, nem nada do tipo — responde com um sorriso e parece se divertir com a minha cara de assustada.

— Ah, claro, porque o Jack estripador chegou nas suas vítimas e foi logo avisando que era um assassino em série — zombo e ele ri ainda mais.

— Você tem razão, mas esse não é o meu caso. Olha só, meu nome é Rafael Menezes Lima, você provavelmente conhece a minha mãe.

Reparo agora no seu rosto e ele me parece familiar. Claro, o senhor Lima, dono da rede de supermercados Lima. Rafael é a cara do pai.

— Você é Rafael Menezes Lima, filho do senhor Lima? Aquele garotinho que foi estudar fora, há uns... dez anos?

— O próprio. — Levanta o dedo e aponta para si mesmo.

— Eu não sabia que você tinha voltado.

— Faz um mês mais ou menos.

— Mas veio para ficar ou a passeio? — pergunto.

As nossas famílias são amigas, Rafael e Leonardo estudaram juntos quando éramos mais novos. Mas eu não me lembro que ele tinha um sorriso tão bonito. Acho que o exterior fez bem para ele, aquele garotinho se foi e voltou um homem feito.

— Ainda estou decidindo. — Coça a cabeça e me encara. — Agora que já sabe que não sou um perigo, que tal terminamos essa conversa na minha casa? Tonta e eu também estamos com sede.

Sorrio envergonhada.

— Pode ser. — Dou de ombros. Eu sou uma fugitiva do meu próprio casamento, não tenho nada melhor para fazer e não posso voltar para casa ou vou encontrar o sem vergonha, safado, vulgo meu ex-noivo.

— Vem, é logo ali na frente.

***

Alguns minutos depois paramos em frente a uma casa de dois andares, com a fachada laranja e uma pequena sacada com balaústres brancos.

Rafael abre o portão e dá passagem para que eu entre. Tonta passa correndo na frente. Passamos por uma garagem com um carro e uma moto e logo estamos entrando na casa. A porta dá entrada para uma pequena sala.

— Seja bem-vinda a minha humilde residência.

— Você não está com os seus pais? — indago.

— Não, eu gosto de ter privacidade — explica.

Rafael tira uma bolsa de carteiro, que eu não havia reparado, dos braços e joga no sofá. Viro-me e reparo na decoração do ambiente que estamos. Há um sofá verde musgo de dois lugares e alguns puffs coloridos dos lados, tudo de frente para uma TV gigante.

— Vem, a cozinha é por aqui.

Sigo Rafael por um corredor que dá acesso a uma cozinha toda maravilhosa. Os móveis e eletrodomésticos são azul-escuro e pequenos ladrilhos azuis com amarelo ocupam as paredes. A mesa é integrada com o balcão, que também comporta um Cooktop, e as cadeiras são amarelas. A casa é repleta de cores e não posso imaginar como deve ser os quartos.

"Sossega esse facho, Luíza. Você acabou de fugir de um casamento, nada de pensar em quartos de outros homens." Minha consciência grita.

— Sua casa é linda — elogio e Rafael sorri orgulhoso.

— Obrigado, fiz questão de escolher cada detalhe. Eu amo esse lugar, apesar de estar aqui há pouco tempo.

Rafael puxa uma das cadeiras e me oferece, sento-me e ele dá a volta no balcão. Pega uma jarra de água, dois copos e vem sentar ao meu lado.

— Imagino, isso é um sonho.

Ele serve os dois copos e me passa um. Bebo rapidamente e ele o enche de novo, sem nem que eu peça. Nem havia percebido que estava com tanta sede.

— Quer comer alguma coisa? — oferece.

— Obrigada, mas os últimos acontecimentos acabaram com o meu apetite.

Ele assente com a cabeça e me analisa de cima a baixo. O meu vestido deve estar com a barra imunda, o coque desfeito e prefiro nem comentar sobre a minha maquiagem. Deus, eu estou um horror.

— Sem querer ser indelicado, mas o que exatamente aconteceu no dia de hoje? — indaga com uma sobrancelha erguida.

Respiro fundo e penso por onde começar.

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