A Realidade

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As batidas constantes e delicadas na porta de madeira fizeram a cabeça de Hector latejar levemente, enviando impulsos de dor por todo seu corpo. Pela leveza dos toques, ele sabia que era sua irmã mais nova que estava insistindo para que o garoto acordasse. Era manhã de domingo e o primeiro dia do mês, então Hector tinha absoluta certeza de duas coisas, a primeira era que ele e seu pai deveriam entregar os pães do castelo conforme o contrato firmado com o rei Adrião desde o dia em que ele flagrou a princesa se banqueteando na padaria de sua família há seis anos e a segunda era que aquele dia marcava o décimo sexto aniversário de Helena, e a garotinha que outrora Hector conhecia tão bem e brincava pelas ruas da capital fugindo dos soldados reais, agora havia se tornado uma mulher de beleza inquestionável e conhecida em todo o reino, sendo constantemente cortejada inclusive por príncipes estrangeiros e herdeiros de famílias ricas das terras de Solstício, infelizmente, a mais de um ano, a amizade entre os dois também havia se transformado de maneira inexplicável.

― Já acordei Beatriz!

Sentando-se na cama, Hector ouviu os passos de sua irmã soarem abafados no chão de madeira enquanto ela se afastava da porta do quarto. Tudo em seu corpo doía da noite anterior; braços, pernas, costelas, principalmente as costelas, mas por sorte, seu rosto estava intacto, era muito importante tomar cuidado para preservar os dentes no lugar, do contrário, sua mãe faria questão de lhe dar umas boas bofetadas.

Há cerca de nove meses, mesmo sob protestos fervorosos e algumas ameaças bem criativas por parte de sua mãe, Hector começou a participar das lutas organizadas na Taverna do Porco, em partes por que era bom ter um alvo para descarregar certas frustrações e incômodos e por outro lado, ele havia percebido desde muito cedo que sabia bem como usar os punhos, isso, nas lutas organizadas por Porco, garantiam algumas moedas de bronze extras para ajudar nas despesas de casa. Seu pai e sua mãe obviamente não concordavam, mas Hector era o mais velho de três filhos, estava cansado de ver sua mãe lavando as roupas dos ricos da cidade e sendo maltratada por homens e mulheres que se achavam os donos do mundo só por que pagavam suas contas com moedas de prata.

A padaria de seu pai era uma fonte segura de renda, eles haviam se tornados os fornecedores oficias do castelo e o próprio rei Adrião fazia questão de comparecer no estabelecimento algumas vezes por mês, mas isso não significava que Hector não quisesse comprar um pouco mais de carne para ver seus irmãos satisfeitos e sorridentes, ou comprar um dos perfumes da perfumaria Aroma dos Deuses. O primeiro e único perfume que o garoto havia conseguido comprar ali, custou três meses de lutas perigosas contra os oponentes mais cruéis da Taverna do Porco, mas valeu a pena pelo sorriso de sua mãe. O vidro era minúsculo, cabia na palma da mão, porém, sua mãe havia beirado as lagrimas e isso era o suficiente para compensar cada golpe que seus oponentes haviam lhe conferido.

― Hector, anda filho, já raiou o dia.

A voz doce de sua mãe foi o suficiente para tirá-lo do entorpecimento matinal, o garoto levantou-se e abriu a janela de seu quarto, que dava para a área de sua casa destinada a um pequeno jardim de ervas que seu pai cultivava e que ajudavam a dar novos aromas e sabores para seus pães. O dia estava claro e as nuvens faziam desenhos engraçados no céu azul límpido, os pássaros cantavam em alguma árvore ali perto fazendo seu canto se misturar a cacofonia da cidade de Alaran, a capital do reino de Solstício. Hector pegou uma camisa de algodão cru e, em meio a caretas de dor, vestiu-se enquanto saia de seu quarto, sua casa era simples e modesta construída de madeira com três quartos minúsculos alinhados de um lado, uma cozinha arrumada de forma metódica adjacente aos quartos e uma área um pouco maior e oposta ao restante dos cômodos, que servia para seu pai preparar seus famosos pães.

Assim que saiu do quarto, um pequeno vulto veio em disparada da cozinha e se jogou em seus braços, apertando seu pescoço e fazendo seu dia melhorar de forma extraordinária. Beatriz tinha apenas oito anos, era elétrica e bem disposta como Hector, mas as semelhanças acabavam ai, a garotinha tinha a pele bem mais clara que ele, cabelos castanhos claro muito lisos e grandes olhos cor de mel, assim como seu outro irmão que tinha 10 anos e bochechas tão grandes que Hector fazia questão de implicar sempre. Ele por sua vez, tinha a pele levemente curtida pelo sol, olhos verdes e cabelos encaracolados tão negros quanto o carvão. Sua mãe sempre dizia que ele havia puxado ao pai, mesmo ele nunca concordando.

Entre Reis e Demônios - A Filha do TempoOnde histórias criam vida. Descubra agora