DIA 9

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Era quase hora do almoço. Lance estava com fome. E os cardumes já tinham todos ido embora. Era por isso que costumava viver como nômade: siga os cardumes, ou morrerá de fome.

Mas agora ele tinha Keifi na vida dele. O humano disse que poderia caçar por dois, mas Lance não achava isso certo. Queria ser um deleite, não um peso. Ele precisava fazer alguma coisa sobre.

Então ele começou a nadar e fuçar entre as pedras da baía e, na parte mais próxima da floresta, onde tinha bastante lama e raízes, e encontrou caranguejos, siris e peixes pequenos.

Exatamente o que queria: comida.

Aquilo era muito pouco pra sacia-lo. Precisaria de dezenas daquelas criaturas magrinhas para matar a sua fome, por refeição; mas Keifi parecia comer bem menos do que ele. E levar pouca comida era melhor do que nada.

Ele tentou as encurralar mas as suas presas entravam em buracos e lugares que eram pequenos ou rasos demais para Lance. Ele sente falta de quando era pequeno e bastavam apenas uns cinco daqueles peixinhos para matar a sua fome. Antes de conhecer qualquer humano. Antes de conhecer Verônica. Ah, como sentia falta dela.

Depois de muitas tentativas, conseguiu pegar um siri. Lance ficou todo orgulhoso e foi nadando mostrar o que conseguiu para o seu humano.

Keith estava assando o pássaro que caiu na sua armadilha, de mau humor. Não tinha quase nenhuma comida decente naquela maldita ilha, e ele sabia que, se caçar demais de uma vez, as presas iam começar a acabar. Isso realmente o deixava preocupado. Mas a boa notícia era que ele conhecia muitas das plantas que cresciam por lá. Agradeceu a si mesmo por ter sido um pirralho irritante, tendo feito Shiro estudar com ele para todas as provas da Academia Real de Marinheiros.

Keith queria MUITO navegar. Mas não era muito fã da disciplina da Marinha Real. Odiava respeitar autoridades, e muito mais ter que seguir os outros cegamente e a parte do "Juro morrer por Altea". Então usou Shiro, que cursava a Academia Real, para conseguir o máximo de conhecimento possível.

Queria que Shiro estivesse com ele.

Lance encontrou o humano no lugar de sempre, cozinhando. Ele achava engraçado esse costume humano de cozinhar as coisas antes de comer, e exibiu a sua presa a Keith com muito orgulho.

"Uau. Parabéns Lance, eu nunca consegui pegar um desses antes".

O sereio entendeu o elogio como um convite para narrar dramaticamente a sua grande façanha, e Keith o ouviu com gosto e rindo um pouco, enquanto terminava de fazer o almoço.

"Desculpe, Lance, não tem muita carne dessa vez".

Problema. Lance só comia carne.

Ele explicou ao humano que vegetais fazem mal para o seu estômago, e Keith se sentiu culpado. Talvez eles realmente acabariam passando fome.

O humano cedeu toda a carne que tinha ao sereio, que se sentiu ao mesmo tempo grato e culpado. "Se ao menos eu fosse menor... eu não sentiria tanta fome", pensava Lance. Então ele começou a pensar em uma solução, enquanto Keith chegava à conclusão de que vegetarianismo não podia ser tão ruim assim, esperando que a caça que conseguisse fosse o suficiente para alimentar Lance.

"Ei, Keith, eu tive uma ideia. Mas vou precisar da sua ajuda".

"Pode falar".

"Bem, então, eu tava me lembrando de quando eu era pequeno sabe? Antes de eu começar a seguir os cardumes e tal, eu morava em um recife de coral. E lá tinha MUITO peixinhos pequenos, que nem os que tem aqui"

"E o que isso tem a ver comigo?"

"Isso? Nada. O que tem a ver é o meu plano. Sabe, eu percebi que era grande demais para encurralar e pegar esses peixes - eles se escondem nos buraquinhos entre as pedras - e que você sempre pega presas menores e mais rápidas que você. Com ARMADILHAS. Entendeu?"

"Claro! Como eu não pensei nisso antes! Mas não sei se sei fazer armadilhas para peixes..."

"Eu te ajudo! A gente vai fazer um monte de armadilhas e pescar muito!"

Keith sorri. Não iam passar fome! Ele se sente muito grato por ter um companheiro inteligente e engraçado. E Lance se sente MUITO feliz e animado para trabalhar com Keifi em um projeto em comum. Fazia tanto tempo que ele não tinha ninguém com quem compartilhar os seus problemas e soluções. Ninguém com quem contar... Mas agora ele tinha Keifi!

Eles começaram a montar as armadilhas logo que o almoço acabou. Keith não conseguia parar de pensar no que Lance tinha lhe contado sobre o recife de coral, e ficou tentando deduzir em qual ilha ele nasceu e porque tinha saído de lá. Possibilidades bem horríveis, como pescadores cruéis que queriam vendê-lo no mercado negro cruzaram a sua mente, mas ele não consegue chegar a nenhuma conclusão.

Então ele suspirou e perguntou:

"Lance, por que foi embora do recife de corais?"

"O quê?"

"Você disse que morava em um recife de corais"

"Sim, sim, mas... você está PEDINDO para mim contar uma história?"

O humano respira fundo.

"Sim, Lance. Não faça com que eu me arrependa".

O sereio fica muito feliz:

"AAH, NOSSA, que EMOÇÃO! Acho que eu vou chorar de felicidade!"

"Cala a boca, seu trouxa. Conta logo"

"Ok, ok. Tudo começou no dia em que eu nasci"

"Lance, vai direto ao ponto"

"Não, Keifi, assim fica chato. Tenho que começar do começo"

"Aff. Você é um monstro marinho bem irritante, sabia?"

"Pff, é claro que eu sei. Enfim, a primeira coisa de que eu me lembro é da voz de uma mulher. Acho que ela era a minha mãe, ou algo assim. Era uma voz bem bonita, mas um pouco triste. Ela me guiou até o recife, em uma ilha bem pequenininha e deserta. Não tinha ninguém além de mim lá"

Keith sentiu uma pontada de inveja. Não lembrava nem da voz da mãe dele. Mas ao mesmo tempo sentiu raiva da mãe de Lance. Aparentemente, o sereio tinha sido abandonado como ele. Talvez até pior. Pelo que o sereio dizia, seu pai também o abandonou. Keith pelo menos teve pai, até ele morrer em um incêndio a uns 5 anos atrás.

O sereio continua:

"Como eu era pequeno, eu conseguia caçar e nadar pelos corais de boas. Aprendi a cercar os peixinhos com os tubarões que viviam por lá"

"Os tubarões te ensinaram?"

"Ahn, mais ou menos. Eu vi eles fazendo, e copiei. Mais ou menos isso. Foi assim que eu aprendi a caçar em alto mar, também. Mas eu prefiro as táticas dos golfinhos do que as dos tubarões pra caçar cardumes"

"Tá, mas... porque você foi pra alto mar?"

"Porque eu cresci, Keifi. Não passava pelos mesmos lugares, ficava preso na maré baixa, não conseguia pegar peixes o suficiente. Fiquei com fome. Aí a voz dela voltou, e me aconselhou a ir para alto mar"

"Espera, como assim 'a voz dela voltou'"?

"Eu... eu não sei. Só sei que ela fala comigo, nos meus piores momentos e me aconselha. E ela me chama de 'minha criança', então... sei lá"

"Sua mãe... Não é uma sereia?"

"Não, com certeza não. É como se... ela fosse o oceano em si. Só que uma mulher"

Keith fica chocado. Lance... era filho... do oceano? Ou melhor, dA Oceano? Lance percebe a confusão no rosto do companheiro, e ri.

"Estranho, né? Nunca conheci outra pessoa que consiga ouvi-la"

Um Conto Sobre o Mar (Klance)Onde histórias criam vida. Descubra agora