Ratos afogados

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O ser humano possui uma incrível capacidade de adaptação. Então, por mais que seja um processo perfeitamente natural, o corpo ainda insiste em lutar contra a morte.

O enforcamento, por exemplo.

Pode parecer à coisa mais simples do mundo, se pendurar pelo pescoço numa corda, e dar adeus aos seus problemas. Mas não, nem de longe é tão simples. Não entrarei em detalhes a respeito de como é ficar exatos três minutos sendo asfixiado até a morte. Direi apenas o básico, e o óbvio. O pescoço quebra, a entrada de ar se fecha, e quando seu cérebro por fim se livra de todo aquele oxigênio: você está morto.

Você morre, ou você sobrevive e acorda no hospital.

Achou que teria paz em fim, mas surpresa! Aparentemente os paramédicos competentes e a sua ex-namorada tinham outros planos pra você. Oh sim, minha cara alma tristonha, você escolheu um dia péssimo pra cometer suicídio.

Justo o dia que ela escolheu aparecer na sua casa sem avisar. A pobre garota estava lá para pegar as suas coisas, apenas isto. Mas o que ela encontra? Sim, ela te vê lá patéticamente pendurado. A corda se rasga poucos segundos depois dela te ver, e não deu tempo de você morrer.

As devidas providências são tomadas. E então quando você acorda, lá está ela com cara de culpada, olhando-te com aqueles malditos olhos chorosos de cachorro faminto. Transbordando a mesma carência enjoativa de sempre.

Quando Victor finalmente se desperta é exatamente aquela expressão que lhe vem à mente. Cabelos tingidos de ruivo, olhos marejados e aquela ridícula boca contorcida de tristeza. Para os de fora eles provavelmente pareciam um belo casal.

Ela o salvou, sim. De longe, aparentemente foi isso que aconteceu, mas a realidade, porém, era bem distante daquela aparência superficial. Afinal, como pode um rato que está se afogando salvar outro na mesma situação?

A ressaca lhe dá bom dia assim que ele se senta no chão. Era mais um de seus pesadelos. Aquele dia persistia em habitar na sua cabeça, mas de qualquer forma era interessante. Parecia estar vendo a vida de outra pessoa, de alguém muito distante dele, mas que ainda assim lhe soava levemente familiar.

Já não tinha mais vontade de morrer. Não tanto quanto antes pelo menos. Não era mais do tipo que se enforcava, era mais chegado a tomar uma cartela de calmantes e esperar pelo pior, este que nunca veio. Dormiu, acordou, e ali seguia com a vida a qual lhe foi incumbida.

A janela ainda está aberta, mas para sua sorte nenhum ladrão se dignou a entrar ali. Nem uma única alma maligna para se dispor a lhe dar um tiro.

"Que seres humanos mais inúteis." — pensou ao se levantar.

O dia estava nublado outra vez, então não dava pra saber se o sol estava nascendo ou "morrendo". Ou mesmo se ele ainda estava ali, escondido em algum lugar.

"Foda-se" — murmurava cambaleando até a cozinha. Agora ele tinha a merda do dinheiro, podia fazer o que quisesse. E isso incluía acordar a qualquer hora.

"Era tão simples cativar alguém"- Ele pensava, ainda mentalizando o rosto daquela maldita alma intrometida.

Era só escolher corretamente a vitima, de preferência insegura e burra.

Demonstre confiança, depois solte uma ou duas fraquezas. Conte o quão merda é sua vida, ou quão sofrida foi sua infância. Deixe-a pensar que está te curando, te ajudando. Sim, deixe-a tocar nas suas feridas podres, e finja que aquilo faz efeito.

Afinal, aquela ação lhe ajuda a se sentir útil e confiante, alimenta o seu ego frágil.

Ver alguém ferrado lhe dá vontade de adotar, de cuidar. Apenas por quê depois aquilo lhe dará mais poder sobre a pessoa. "Eu estava aqui quando precisou, agora trate de se mostrar grato."

E você gosta daquilo. Gosta do aconchego, da vulnerabilidade, do apreço. Seu ego é tão inflado quanto o dela, são dois egoístas agindo pelos mesmos motivos. Se enganando e chamando aquilo de amor. Dois ratos morrendo afogados, mas ainda assim chamando aquilo de nado sincronizado.

Se dedicando de uma forma incrivelmente tosca, em lamber as feridas um do outro.






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Trecho de um possível futuro livro, que agora está disponível só por quê gostei mesmo.

Votem e é isso ae.
Obg pela leitura, se é que vai ter mesmo alguém lendo essas desgraças.

Vou soltar capítulos aqui quando a inspiração bater, então é imprevisível.

Ratos AfogadosOnde histórias criam vida. Descubra agora