Dez anos depois

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2019,

São Paulo, SP

Nos meses que seguiram, minha vida mudou um pouco. No novo ano que começou, após aquele em que fui estuprado, preparei-me para o ENEM e o vestibular da USP. Fiz e passei para história. Então, deixei São Luís e fui para São Paulo.

Lá é tudo muito barulhento, São Luís era, mas não tanto. O céu é mais cinza que o normal, muita poluição. Prédios. Avenidas enormes. E nuvens cheias de metais pesados que evaporam das fábricas.

Meus pais ficaram na Cidade dos Azulejos, com seus casarões e com suas praias poluídas.

Eu não sei explicar porque escolhi história. Mas o fato é que gostei do curso. Na faculdade as pessoas são adultas ou fingem ser. Lá eu também não tive amigos, mas pelo menos não me batiam.

Decorridos quatro anos e meio, formei-me historiador. História é interessante. Praticamente tudo que a gente fala, tudo que a gente faz e não faz vira história. Passado-presente-futuro. O ponto continuando que eu acabei de colocar depois da palavra futuro ficou no passado, no futuro veio a letra O, mas o tempo é tão rápido que já era presente, que depois virou passado. O tempo voa. É certo que depende muito do nosso estado de espírito. Se estamos felizes, ele parece passar rápido, se estamos tristes, ele demora. Esses dez anos demoram a correr.

Com a história eu me tornei mais humano. Olhava as pessoas, o mundo de forma diferente. Tudo eu problematizava. Tudo eu queria compreender. Tudo eu achava que existia um porquê e que merecia ser investigado. As pessoas têm motivos para serem como são e fazerem o que fazem. Eu aprendi também com a história que a história se repete. E que isso pode ser perigoso.

Karl Marx e Hegel escreveram certa vez que "os grandes fatos e os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, por duas vezes. A primeira como tragédia, a segunda como farsa." Eu concordava, e acrescentava, a história e os fatos podem se repetir por múltiplas vezes e não só duas e todas levam à tragédia.

É preciso ter cuidado, é preciso ensinar a não repetir a história. Quantas vezes os comunistas foram uma ameaça criada para respaldar governo autoritário? E quantas vezes isso não levou a tragédias?

Isso não vale só para fatos históricos, de personagens históricos. Isso também vale para nossa história pessoal. A gente não pode deixar a nossa história se repetir, mesmo que seja uma história boa. Porque um dia a gente cai em conta e vemos que a nossa vida não teve nada de novo, foi tudo cíclico. A gente tem que aprender a mudar.

Eu gostei tanto de história que, após a graduação, fiz mestrado e doutorado e consegui ser professor efetivo da USP, recebia um salário razoavelmente bom, o suficiente para eu gozar de uma boa vida pela grande São Paulo. Também me aventurava por campos de pesquisa.

Eu, embasado pela história, fiz de tudo para impedir que a minha história se repetisse. Eu carregava cicatrizes mesmo após dez anos. Então, todas as minhas pesquisas eram voltadas para a história das mulheres. Eu ajudava as mulheres em suas lutas. Eu apoiava casas para mulheres vítimas de agressão, de abusos.

Eu também fazia palestras, trabalhos acadêmicos sobre prevenção ao bullying. Ensinava meus alunos da graduação a sempre estarem atentos aos seus futuros alunos, a sempre falarem sobre o bullying e a sempre ajudarem.

Mas de uns tempos para cá, eu queria fazer mais para minha história não se repetir.

Quando Thiago fez aquilo comigo no dia da formatura, eu o odiei tanto. Parecia que todo o meu amor por ele nunca existiu. Eu senti nojo dele, eu senti ódio. Eu reprimi o meu choro e ele se transformou em ódio, eu acho. Desde daquele dia eu nunca consegui esquecer aquilo. Sonhava toda noite com aquele fato, sonhava toda noite com sangue. Não por acaso a cor do amor é vermelha, amor e ódio são quase sinônimos. Por isso a namorada ou o namorado sente vontade de matar um ao outro quando brigam. É certo que nos dias de hoje isso é visto como relacionamento abusivo, mas o amor é assim, o amor romântico e irracional. Não por acaso na época do romantismo tudo terminava em tragédia, o ou a amante que morreu de desgosto ou que se suicidou, o ou a amante que matou porque amava. Os amantes que foram felizes para sempre. Era tudo muito exagerado. Fico feliz que o amor virou meio termo e mais racional.

Eu o odiei a ponto de jurar vingança. Eu disse para mim mesmo que eu o encontraria de novo e faria ele pagar, não senti a mesma coisa pelos outros. Só por ele.

Desde daquele dia, eu nunca mais me envolvi com nenhum outro homem. Acho que eu estava enganado quanto a minha sexualidade. Eu só conseguia ouvir "bicha", "bicha" na minha mente.

Então, passei a me relacionar com mulheres. Foram só duas, que conheci em apps de relacionamentos. Ambas não suportaram a minha carga dramática e melancólica e foram embora. E nunca mais me envolvi com ninguém. Eu ainda era muito triste, mesmo nos meus 25,26,27 anos. Eu pensei que quando eu crescesse a tristeza se apequenaria. Mas não. Eu me reprimi demais.

Quando fui para São Paulo, deixei todo o meu passado para trás. Menos Thiago. Ele foi comigo na minha mente. Mas eu nunca mais soube dele realmente, apenas virtualmente.

Checando as redes sociais dele, desde que fui para São Paulo, soube que, cinco anos depois daquele ano, ele se casou com uma mulher chamada Érica. Creio que era a mesma que ligava para ele no sábado em que transamos e que ele ignorava a ligação. Nas fotos do Facebook eles pareciam muito felizes.

Também soube, virtualmente, que mais a frente ele seguiu a carreira militar. Era um policial. Pelas fotos pude ver que ficou mais forte, efeitava o rosto no estilo "barba por fazer".

Eu sempre tentei ser uma pessoa boa, mas quando olhava as fotos dele, um instinto selvagem me consumia. Uma cólera aguda me tomava. Então, eu rezava e pedia a Deus para me livrar daquilo. Mesmo sendo ateu, eu clamava a ele.

Eu racionalizava tudo o que eu sentia, mas não conseguia tornar razão aquele sentimento de ódio por ele.
Creio que porque eu o amei e recebi aquilo dele.

Eu mudei minhas feições também. Ganhei mais músculo. Deixei a barba longa. Mas continuava triste e me sentia frágil. Tem coisas que não mudam.

Certo dia, passados mais alguns anos, vi que ele começou a postar fotos com a localização de São Paulo. Era sua terra natal. Não sabia o motivo dele ter voltado, só depois eu soube; mas ele estava ali, na cidade onde eu estava. A cólera aguda ficou mais aguda. O sentimento de ódio se tornou incontrolável.

Quando ele estava em São Luís, bem longe de mim, eu não sentia necessidade de fazer alguma coisa. Mas ali perto de mim, não sei se aguentaria. Não aguentei.

Cansei do destino há muito tempo. Cansei de esperar as coisas acontecerem. Então, eu fazia as coisas acontecerem. Eu juro que tentei ser uma pessoa boa.

Mas amar para mim era uma tragédia. Se a gente ama alguém, temos 50% de chances de se envolver em tragédias e 50% de chances de ser feliz. O amor é contraditório assim mesmo. Eu me envolvi naquele dia e aguentei tudo sozinho.

Dores físicas não doem tanto quanto dores emocionais, não doem tanto quanto humilhações. Eu prometi que não iria machucar ninguém, apenas fazer ele passar pela dor que eu passei. Eu iria apenas humilha-lo.

Ele me fez mal, deveria pagar por isso. Afinal, as chances de não fazer a minha história se repetir o punindo eram enormes. Se ele fez comigo, ele poderia fazer com outras pessoas.

O crime deve ser castigado para não acontecer de novo. Eu não sentia o mesmo desejo pelos meus outros colegas de classe, apenas por Thiago, e isso eu não conseguia explicar e também não fazia questão de entender.

O ódio é um sentimento bruto. Todos nós seres humanos sentimos. Mas ninguém nasce odiando, a gente aprende a odiar ou a gente é moldado a odiar. A maioria das pessoas que sentem algum ódio, seja por si própria ou por alguém ou algo, já amou bastante; ela também pode ter sido reprimida de amar e daí passou a odiar. O certo é que o ódio passa pelo amor. O amor passa pelo ódio. Ambos são sentimentos poderosos demais para o ser humano domar.

Nós humanos somos puro ID, puro desejo, puro instinto, puro libido, daí criaram as leis sociais e morais para nos adequar e sermos menos parecidos com um animal qualquer e para não nos devorarmos a cada esquina.

Com toda a minha razão, eu não consegui controlar o meu desejo de punir ele por aquele dia. Eu era bom, eu sempre fui bom. Eu sempre me punir pelo o que faziam comigo, mas com Thiago deveria ser diferente. Eu deveria puni-lo. A história não pode se repetir. Isso pode ser perigoso, como o amor e o ódio.

A Vingança de RúbelOnde histórias criam vida. Descubra agora