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Quando fomos embora do motel ainda chovia. Eu cheguei em casa e tomei um banho, não para tirar a sujeira do dia. Mas para tirar ele de mim. Limpar minha alma dele. Eu vomitei pelo resto da madrugada. Vomitei ele.
Senti todos os sentimentos de asco juntos. Nojo, ódio, repulsa... Passei álcool gel por todo o meu corpo. Aquele não era um ódio racional.

Naquele dia não consegui dormir. Eu estava muito confuso, muito assustado. Tive muito medo, tive muito ódio.

Por um instante deitei na cama, pensei nele, naquela madrugada, nele em cima de mim de novo, nele entrando em mim de novo. Vomitei.

Abri o celular e revi aquilo tudo. No vídeo, eu não fazia nada, não me mexia, não gemia, ao contrário dele. Eu estava morto ali. Vendo ele entrando e saindo de mim, através daquele vídeo, excitei-me e logo vomitei.

Eu gravei aquilo tudo. Quando entramos no motel, ele foi tomar banho. Então, posicionei o meu celular em frente à cama que transaríamos. Gravei tudo. Ele não percebeu.

A era digital é rápida, facilitava bastante e facilitou o que eu queria fazer. Essa é a sociedade do espetáculo.

Naquele mesmo dia, fiz alguns ajustes no vídeo. Borrei meu rosto e enviei para ele. Depois joguei, através de contas fakes, em todas as redes sociais. O vídeo rapidamente viralizou. A era digital é muito rápida.

Passadas algumas horas, li notícias e mais notícias em sites sensacionalistas sobre o vídeo de um militar fazendo sexo com um homem.

Por algum motivo, o século XXI é muito avançado, alta tecnologia, o homem quase virando robô, mas extremamente conservador. Eu sabia que na nossa sociedade um assassinato não era tão vergonhoso quanto dois homens se beijando, ou transando. As pessoas podiam se matar mas não amar quem quisesse, mais uma ironia do amor. Prendidos em bons costumes tradicionais e hipócritas, muitos do século XXI abominam o amor em sua forma diversa.

Na área militar, marcada pela hierarquia, então nem se fala. Ser um policial gay é uma aberração. Gays são frágeis como as mulheres. Representam alguns traços femininos, por isso as sociedades patriarcais tentam extingui-los tal como fazem com as mulheres. De alguma forma o homem hétero se sente ameaçado pelo homem não hétero. É como se ser gay colocasse em xeque ou traisse o ideal de ser macho e desestabilizasse a proposta cultural de dominação masculina na sociedade. Põe em crise o ser macho dominador. Então esses os ridicularizam ou mesmo os matam. É certo que pode ter a ver com sexualidade reprimida e tudo mais. Mas o certo é que homens gays são mortos no século XXI como há 100 anos e isso é triste.

Com aquele vídeo soube, por alto, que eu acabei com a carreira militar de Thiago, não que ele foi demitido ou algo do tipo, mas porque ele se demitiu pela vergonha de encarar os outros homens. Todos os dias eles faziam chacota com "bichas" que passavam por eles, e agora todo mundo sabia que ele também era uma "bicha" e aquilo o vergonhou. Ele nunca entendeu que não tinha pecado algum ser quem ele era. E que ser quem ele não era dava-lhe muito conflito. Amar não deveria nunca ser uma vergonha.

Eu entendia que ser quem ele era, ou ser quem eu era não era um problema. O grande problema era nem eu, nem ele nos aceitármos como éramos. Por isso o vídeo gerou tanto conflito nele. Por isso eu tive a ideia de ridicularizar ele por ele ser quem era. Se não nos aceitamos, nos matamos, sentimos vergonha de nós mesmos. E ele nunca aceitaria quem ele era. E eu sabia disso. Às vezes a verdade nos destrói, porque não a aceitamos.

Por isso o nosso amor virou tragédia antes mesmo de começar.

O fato é que desde do vídeo ele havia sumido, nem sequer respondeu o vídeo que eu mandei para ele. Achei que ele tinha aceitado aquilo, como eu aceitava tudo que faziam comigo.

Eu não senti nada demais ao publicar aquele vídeo, não senti-me saciado, não me senti honrado e nem vingado. Só não sentia mais nada pelo meu passado, não sentia mais o ódio por ele, nem o amor. A partir dali eu não senti mais nada.

Às vezes a gente deixa de sentir as coisas, eu havia deixado há muito tempo de sentir alguma coisa pela vida, a única coisa que me movia era o ódio por ele e depois não senti mais nada. Senti-me morto.

Eu não me ouvi. Repetir a história é perigoso. Se todos os dias, no final do dia, havia tragédia, era porque a história havia se "repetido" e ensinado pouco em algum lugar. Então, devemos aprender mais com a História.

Não podemos ficar revirando o passado, feridas são reabertas. Mágoas nunca somem, e então somos consumidos pela nossa própria história. Eu anunciei a tragédia de nossas vidas quando não deixei o passado para trás.

Depois de ter sumido, ele ressurgiu. Não sei como, mas quando cheguei em casa em um dia qualquer do mês de dezembro, ele estava lá. Deitado na minha cama. Um olhar doentio moldava suas feições, parecia embriagado. Então aquela madrugada se repetiu. A minha história se repetiu. Veio à minha memória o dia da minha formatura no ensino médio. Daquela dor que eu senti depois daquele dia. Então ele foi até mim e me puxou para cama. Não falou nada. Eu também não falei. Novamente o medo travou meus músculos, minhas pregas vocais.

Eu deitei com ele. Ele tirou sua roupa, depois tirou a minha e, de novo, entrou em mim com violência. Eu aceitei muitas violências, eu não deveria ter deixado fazerem isso comigo. Mesmo sendo um homem feito, eu agi como se tivesse 17 anos. Eu agi como há 10 anos. Nos meus 27 anos eu era o mesmo com a farsa de ser novo.

Então ele expeliu seu esperma dentro de mim. E desabou sobre mim.
Eu não tinha visto que ele tinha colocado uma arma na mesa ao lado da cama. Daí, ele levantou, pegou a arma e me deu três tiros. Um no coração, um no peito direito e o último no meio da barriga, formando uma tríade. Quando o amor é reprimido, é substituído pelo ódio, pela tristeza. Amor é para viver. Amar é liberdade. Os tiros foram bem calculados. Eu acho que o tempo que ele sumiu, estava treinando me matar.

Então, eu lembrei do perigo de se repetir a história. Eu gostava do perigo, mas não sabia agir com suas consequências.

É menos perigoso ensinar a história a não se repetir. É melhor ensinar história para que não a repitam e sim aprendam com ela.

Quando saí do corpo, após aqueles tiros, pude ver que ele colocou a arma abaixo do próprio queixo e atirou. Massa encefálica subiu ao teto depois do som ensurdecedor. Ele disse, antes de apertar o gatilho, chorando (sabe-se lá por qual motivo), que ele não era bicha e que eu era, apontando a arma para o meu corpo morto. E que eu merecia morrer.

Desde que eu nasci, eu senti que não iria durar muito. A expectativa de vida de um homem gay é bastante reduzida. Mesmo no armário, com vergonha e medo de ser quem eu era, pois na minha cabeça eu só ouvia chamarem-me de "bicha" e "bichinha", eu tinha essa sensação. Mas só tive certeza quando cruzei meu caminho com ele. Ali eu vi que eu havia nascido para não viver. Eu nasci para a chuva e não para o sol, para o escuro e não para a luz.

Eu lembro de ter morrido quando passei a amar ele.
Eu lembro de ter morrido quando eu não me aceitei como eu era, assim como Thiago nunca se aceitou. Quando nós dois não aceitamos nos amar, passamos a nos odiar e a morrer.

Então vos contei essa história, essas vagas lembranças já morto há quase um ano. Não poderia contá-la se vivo estivesse.

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A Vingança de RúbelOnde histórias criam vida. Descubra agora