A formatura

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Eu emudeci pelos próximos 6 meses. Se antes eu falava pouco, quando Thiago passou a fingir que eu não existia, eu falei mais pouco ainda. Só respondia ao que perguntavam, monossilabicamente, até mesmo aos meus pais. Minha mente, ao contrário, falava demais, minha cabeça parecia que iria explodir com tantos gritos.

Chegou dezembro, a época do ano que eu achava a mais triste. As casas já estavam com luzes de Natal nas fachadas. Não sei porque, mas em dezembro o céu fica mais tempo cinza, fica tudo mais relaxado. As propagandas de Natal na televisão completam o ambiente nostálgico com as músicas natalinas de fundo.

A minha formatura foi uma semana antes do dia 25. Recebemos o resultado final duas semanas antes. A minha escola preparou toda uma cerimônia para as turmas de terceiro ano realizarem a colação de grau. Ao final, haveria a festa de formatura, organizada pelos alunos.

Eu nunca gostei de festas. Eram barulhentas demais, de gritos bastavam os que a minha mente ecoavam. O regulamento da minha escola exigia que todos os alunos participassem da colação de grau, mas não da festa. Eu iria receber o meu diploma, mas não ficaria para a festa.

Na manhã do dia da formatura eu acordei indisposto. Com uma leve dor no corpo e na garganta e com a temperatura um pouco elevada. A colação seria no princípio da noite.

Passei aquela manhã toda deitado. Ouvindo músicas. À tarde, levantei-me, comi alguma coisa na cozinha. Tomei um banho. Quando eu estava me vestindo, peguei o espelho na mão para pentear o cabelo mais de perto. Minhas mãos, um pouco húmidas, deixaram o espelho deslizar, até ele se estilhaçar no chão do meu quarto.

Olhei para o chão e me vi repartido. Os pedaços de espelho ainda refletiam-me. Tratei de catar os pedaços do chão. Acidentalmente cortei meu dedo. Saiu um sangue vermelho escuro do dedo indicador. Fui à cozinha lavar e estancar o sangue. Deixei um caminho de pingos de sangue por onde andava. Depois tive que limpar o chão também.

Dizem que quebrar espelhos dá azar. E eu quebrei um naquele dia. Então, aceitei. A sorte nunca foi para mim mesmo.

Horas depois os meus pais chegaram. Eu já estava pronto, esperando-os no sofá. Esperei mais algum tempo.

Então, eles se aprontaram e fomos para a escola. A cerimônia foi no auditório.

No caminho até a escola apreciei o céu nublado, quase chorando. De repente caiu um pombo cinza do céu. Ele estava morto. Não me perguntem como, mas o pombo caiu do céu morto, quase em cima de mim. Talvez alguém, com alguma baladeira, atingiu-o, ele parecia ferido na cabeça. Com o impacto no chão, meus pais se assustaram, eu também.

As pessoas dizem que nunca viram filhotes de pombos, eu também nunca vi. Mas se os matavam, para que queriam vê-los? As pessoas tratam os pombos muito mal. Acostumam-nos na cidade, dando migalhas de pão, depois passam com o carro por cima deles ou os espantam sempre que passam por eles. Dizem que transmitem doenças. As pessoas também fazem isso com as pessoas, cativam-nas e depois escarram-nas de suas vidas.

O pombo ficou na calçada morto. Nem direito a velório têm.

Chegando ao auditório, sentei-me próximo à entrada. Após algum tempo, chamaram o nome de Thiago. Ele não apareceu, então a pessoa que estava chamando jogou o diploma dele em algum lugar embaixo do púlpito.

Desde daquele dia, nunca mais nos falamos. Eu não sabia notícias dele, nem ele de mim, eu acho. Não soube porque ele faltou à cerimônia, que a própria escola obrigava os alunos a participarem. Ele começou a faltar bastante depois daquele dia. Eu achava que era para me manter ainda mais longe. Eu era um pombo.

Depois, perdido em minhas abstrações e pensamentos, ouvi chamarem meu nome. Vicente Rúbel Costa ecoava no microfone. Levantei e fui pegar a chave de saída do inferno. Agradeci só. Então, voltei para onde estava sentado. Aproximando-se de meus pais, pude ver a expressão de orgulho deles.

Não importa como seus pais são, eles sempre vão ter orgulho dos filhos quando estes darem orgulho. Se derem decepção, sempre vão se perguntar onde erraram na criação. Então, a gente se torna um filho qualquer.

Sentei novamente, esperando a cerimônia findar. Deu-me vontade de ir ao banheiro. Fui. Caminhando até lá, podia-se ouvir uma música abafada, tocando em algum lugar ali por perto. Acho que eram as primeiras turmas, que já tinham colado grau, em suas festas.

Entrei no banheiro, aquela catinga de urina, típica de banheiro masculino. Não importa quantas vezes limpem os banheiros públicos masculinos, eles vão continuar fedidos.

Urinei. Fui lavar as mãos. Olhei-me no espelho sujo que estava preso na parede, sobre a pia. Lembrei-me daquele que quebrei em casa. Ainda ali, dava para ouvir a música de antes, depois essa música mesclou-se com vozes de garotos chegando ao banheiro. A música sumiu, substituída pelas vozes que estavam mais perto. Entraram. Olhei-os pelo reflexo no espelho. Era Thiago e mais dois colegas de turma.

Não por acaso, mas pelo deboche da vida, nossos olhos se contatearam pelo espelho. Os olhos dele estavam muito vermelhos, parecia que ele estava drogado. Os meus olhos também estavam vermelhos, mas eles eram assim desde que nasci, refletiam a tristeza.

Eu senti uma coisa boa ali, quando os nossos olhos se olharam ao mesmo tempo.

Então, eu percebi que eles começaram a ri, sabe-se lá de que. Começaram a falar baixinho uns com os outros. Aprecei-me em sair dali. Um dos três, mas não era Thiago, fechou a porta do banheiro e ficou segurando-a.

Começaram a me chamar de bicha. Bichinha. Thiago parecia envergonhado, mas estava em êxtase.

Falaram mais um pouco uns com os outros. O medo me gelou. Voltei a me virar para o espelho. Eu olhava tudo pelo reflexo em minha frente. Não conseguia encarar eles. Travei.

Vi Thiago se aproximando. Empurrou-me contra a parede de cerâmica branca e fria. Segurou minha cabeça contra essa parede. Então, com a outra mão, baixou minha calça até metade da minha perna. E entrou dentro de mim. Não com a mesma delicadeza e tranquilidade da última vez. Eu não conseguia me mover. Nem falar nada. Não chorei, apenas desceu uma lágrima do olho esquerdo. Já havia chorado demais.

Depois foi a vez do outro. Thiago não ficou para ver, saiu, assustado, como se não quisesse ter feito aquilo. Depois foi a vez do outro. Em seguida eles saíram. Antes de irem, disseram que era isso que bichas como eu mereciam. E aceitei.

Vesti-me. Olhei-me no espelho e vi meu olho mais vermelho que o normal. Então descobri o que todas aquelas coisas significou. O pouco de febre com a qual eu acordei. A dor na garganta e no corpo. O espelho que quebrou, o sangue que jorrou do meu dedo quando o cortei. O pombo cinza, que caiu do céu morto.

Lavei meu rosto. Voltei para o auditório. Mal conseguia andar. Ardia, doía.

Cheguei em casa. Tirei a roupa, joguei-a na cama. Tinha sangue na cueca. No banho, apesar da ardência e dor, fiquei imaginando que deveria ser assim que as mulheres se sentem quando são estupradas.

Depois descobri que as mulheres não se sentiam como eu me sentia, sentiam-se pior. Dias depois, lendo um pouco sobre a história das mulheres, percebi o quanto de azar elas tinham desde a criação, ou desde que tornavam-se mulheres. São tão maltradas pelo patriarcado. Mas li também que tinham muita coragem para destruir o poder masculino sobre elas.

Entristeci-me ao saber que as mulheres corriam risco de a qualquer momento passar por aquela dor física e emocional que eu passei, apenas por serem mulheres. As estáticas são assustadoras. Nem todo homem é um potencial abusador, mas toda mulher pode ser uma vítima. Então, passei, a partir daquele dia, a me preocupar mais com a minha mãe. Sempre que eu podia acompanha-la na rua, fazia isso.

O Estupro doi muito, as mulheres não mereciam aquilo. Ninguém merece.

Então entendi que o amor é coragem, imensidão, libertação. É também triste e trágico. Vomitei. O amor não era para mim.
A vida é cheia de coincidências, cheia de tragédias, cheia de tristezas e raras alegrias. Vomitei. A vida não era para mim.

A vida também tem outras certezas além da morte. Sorri. Fui atrás de outras certezas com o olhar vermelho, marejado pela melancolia e pelo ódio.

A Vingança de RúbelOnde histórias criam vida. Descubra agora