Capítulo 6 - Chuvas de Verão

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A festa é amanhã, meu coração está batendo tão forte que eu acho que ela vai escapar pela boca. Não consigo acreditar que me formei, parece que a ficha não caiu. Imaginar que não voltar a ver aquelas pessoas chatas todos os dias ainda é algo meio estranho. Não me acostumei com essa sensação de não ter que ir a escola mais. Hoje mesmo eu acordei seis horas da manhã e olhei pra minha mochila, quase a peguei pra usar. 

Bom, meu vestido está pronto e guardado a sete chaves. Preciso mantê-lo longe da poeira, da sujeira e principalmente das tintas. Eu desenho já a alguns anos, porém não tenho controle algum de como consigo sujar o teto por exemplo. Eu comecei pinturas de cachorrinhos, depois paisagem e de uns dois meses pra cá resolvi pintar apenas coisas abstratas. As vezes pensamentos conflitantes que se digladiam na minha cabeça, as vezes minhas perspectiva caótica de mundo e as vezes meus sentimentos indesejáveis não identificados  ou "SINI". 

Nos últimos dias eu tenho desenhado redemoinhos, não sei explicar muito bem, não acho que são redemoinhos, acho que são espirais, não sei é muito confuso. Uso palhetas de cores bem quentes, vermelho, laranja, amarelo e as vezes até marrom. 

- Filha? - 

Meu pai está em casa hoje. Não sei qual foi o milagre, mas ele está aqui. Fazendo o jantar ainda por cima. Pelo jeito não vou precisar acionar o Ifood, sem porcarias hoje. O que é ótimo, meu vestido é feito sob medida, não posso ganhar nem uma grama, do contrário eu provavelmente teria problemas pra respirar.

- Tô indo. - Disse. 

Ele nitidamente se esforçou. Tinha uma mesa com carbonara, lasanha a bolonhesa, macarrão ao forno. Um típico jantar italiano. O motivo era desconhecido, mas eu gostei do jantar temático. 

- Qual ocasião especial? - Perguntei.

- Não é óbvio? Alguém aqui se formou. - Ele abriu os braços. - Bem vinda a vida adulta. 

Eu suspirei e dei um sorrisinho sem graça. 

- Se acostume, meu amor. Daqui para frente é  faculdade, trabalho, boleto. - Ele disse isso rindo.

- Isso me parece triste. 

- Depende de onde você olhar. 

- Como assim? - Questionei.

Ele se aproximou e sentou na ponta na última cadeira, colocando o prato e as talhares na mesa.

- A vida não precisa se resumir nessas coisas. 

Sentei do lado dele. 

- Sou todo ouvidos. 

Coloquei os cotovelos na mesa e deitei o rosto nas mãos olhando pra ele com atenção. 

- Bom, a gente tem escolhas, fazemos elas bem cedo e as vezes não estamos preparados. Eu tenho amigos meus que curtem todas as noites, que viajam todos os meses ou quase todos pelo menos. - Meu pai se recostou na cadeira, ele parecia reflexivo. - Eu admiro a escolha que fizeram.

- Por que não fez o mesmo? - Indaguei.

- Como assim? 

Seus olhos se arregalaram e suas sobrancelhas arquearam. Eu tinha pego ele de surpresa. 

- Ué, você nunca tá em casa, nunca sai comigo, nunca viajamos.  

- Meu trabalho me consome demais. 

- E por que você não sai dele? 

- E para onde eu iria? 

- Eu não tenho dinheiro, não sei onde nós poderíamos ir. 

- Exato! - Ele exclamou. - Não teríamos lugar para ficar. 

Revirei os olhos, aquele papinho não era muito convincente. 

- O que foi? - Ele perguntou. 

Dei de ombros. 

Fiquei em silêncio por alguns segundos. Ele não parava de me encarar, mas eu estava determinada em não responder.

- Quer me contar algo? Desabafar?

Respirei fundo outra vez, pensei se deveria ou não.

- Não quero falar sobre isso. Não hoje. 

Ele estendeu as mãos e colocou sobre as minhas. 

- Eu imagino. Aliás, amanhã é o seu grande dia. Não quero estragar. 

Um barulho enorme sacudiu as janelas. Parecia uma bomba de tão alto. 

- Quase infartei agora. - Disse meu pai dando uma risadinha. 

- Odeio relâmpagos.

- Eu sei, você sempre odiou. - Ele sorriu novamente. 

- Fazer o que? - Retribui o sorriso. 

- Bom espero que não chova muito amanhã. 

Meu pai tinha dito que iria estar lá amanhã. Na primeira cadeira, gravando eu subir no palco pra me ver receber o diploma. Mas nas minhas peças, nas minhas feiras, nos sarais ele dizia a mesma coisa. "Vou esta lá para te ver". E ele nunca estava e agora ameaçando chover desse jeito as probabilidades de furar comigo amanhã de novo aumentaram consideravelmente.

- Você vai amanhã né pai? 

- Mas é claro. - Ele quase se engasgou quando eu perguntei. - Por que você duvidaria?

- É sério? - Eu olhei pra ele com um olhar distante. 

- Olha. - Ele respirou fundo. - Eu sei que não fui um pai muito presente nesses últimos anos e me arrependo de não fazer parte de vários momentos da sua vida. De ter ficado distante, principalmente quando... Bom, eu me distanciei demais depois que viramos só eu e você. 

Eu continuei comendo enquanto ele falava. Não queria olhar pra ele, era um assunto muito delicado e que me deixava um tanto desconfortável. 

- Mas esse com certeza vai ser a melhor coisa que você vai viver, pelo menos nesses seus primeiros dezoito anos. - Ele deu uma risadinha. - Foi assim para mim e sei que vai ser assim para você. Não perderia isso por nada.

- Pai, só não fura, tá? 

Ele olhou decepcionado, tinha percebido que eu não tinha dado a mínima atenção enquanto ele falava.

- É... tudo bem. - Ele voltou a comer. Parecia estar cabisbaixo. - Não vou decepcionar você. 

Outra vez um raio fez nossos corações quase sair pela boca. Parecia que foi a alguns metros de casa. Eu larguei o garfo na hora e dei um pulinho da cadeira. 

- Esse foi bem perto. - Disse meu pai olhando receoso pela janela.

- Odeio chuvas de verão. - Disse revirando os olhos.

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⏰ Última atualização: Feb 21, 2022 ⏰

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