XVIII- DÚVIDAS E ANSIEDADES

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    Pequenos acontecimentos podem nos ensinar grandes lições. A história de outras eras nada mais é do que uma repetição infinita da história das horas. A prestação de contas de uma alma é composta de inumeráveis momentos. O que o anjo da justiça anota no grande livro não será escrito nas cores do arco-íris; ele mergulha suas penas unicamente na luz e nas trevas. Porque o olho da sabedoria infinita não requer nenhuma cor. Todas as coisas, todos os pensamentos, todos os sentimentos e desejos se resumem em duas contradições, se forem considerados em seus mais inferiores planos e seus múltiplos elementos concretos. Se alguém desejasse ter uma curta versão de uma vida humana inteira, com todas as suas experiências, minha descrição completa e sincera do meu estado de consciência nas próximas 48 horas seria uma resposta. O anjo justiceiro tem, como de costume, de fazer suas anotações com raios de sol e sombras que seriam vistas como a expressão definitiva do céu e do inferno, pois no céu domina a fé, enquanto sobre o negro abismo do inferno paira a dúvida. verdade que naqueles dias o sol apareceu apenas ocasionalmente. Eram momentos em que todas as dúvidas se desfaziam assim como a névoa da manhã se desfaz face a face com o sol — sempre que a graça e o amor de Margaret me vinham à consciência. Mas, como compensação — e era verdadeiramente uma compensação esmagadora —, a melancolia pesava sobre mim como uma mortalha.

A hora que eu esperava com tanta ansiedade e que talvez me acalmasse se aproximava tão rapidamente que me deprimia o sentimento de que em breve tudo estaria terminado.

Para nós todos, essa experiência podia ser um caso de vida ou morte. Mas estávamos preparados para isso. Margaret e eu éramos da mesma opinião sobre o risco que correríamos. O aspecto moral da pergunta, com relação à fé religiosa na qual fui criado, não me preocupava, porque eu não era capaz de perceber o objetivo e a causa por trás dele. A dúvida quanto ao sucesso da grande experiência era a mesma que acompanha empreendimentos de alto risco. No que se refere a mim, cuja vida apresentara uma sequência de lutas intelectuais, essa forma de dúvida já era mais viva do que deprimente. O que, então, me dava medo e aumentava em mim a tortura quando me demorava demais em meus pensamentos sobre o assunto?

Comecei a duvidar de Margaret.

A que se referiam minhas dúvidas, eu não sabia. Eu não duvidava de seu amor, sua honra, sua sinceridade, sua bondade e seu ardor. Do que duvidava, eu então? Dela mesma.

Operavam-se mudanças constantes em Margaret. Durante os dias anteriores, houve horas em que eu quase não reconhecia a moça com quem eu estivera no piquenique e de cuja vigília na doença do pai eu compartilhara. Naquela época ela havia passado por momentos de grande preocupação, do maior medo e dos mais graves temores, mas apesar disso sempre se mostrara cheia de vida, perspicaz e circunspecta.

Agora, porém, quase sempre exibia uma atitude absorta, negativa, como se sua consciência, todo o seu ser, não estivesse presente. Em tais instantes a capacidade de observação e a mente eram claros — em seguida, ela sabia sempre o que se passara ao seu redor —, porém sua volta ao antigo eu era para mim como se outra pessoa entrasse no recinto. Até o momento de nossa saída de Londres, eu me sentia satisfeito e feliz com sua presença. Eu experimentava uma sensação de segurança e tinha consciência de que meu amor era correspondido. Mas agora a dúvida se instalara. Nunca mais eu poderia estar certo de que a pessoa a meu lado fosse minha Margaret — aquela Margaret de quem eu me enamorara à primeira vista — ou aquela nova Margaret que eu praticamente não entendia e cuja reserva espiritual levantava uma parede intransponível entre nós. Algumas vezes ela acordava por momentos de seu estado e dizia palavras muito agradáveis de amor, que já me dissera antes com frequência; no entanto, agora ela parecia uma pessoa completamente diferente.

Ela estava dando a impressão de repetir igual a um papagaio o que alguém lhe ditava e que esse alguém poderia dirigir suas ações e suas palavras, mas não seus pensamentos. Após uma ou duas dessas ocorrências, minhas dúvidas se tornaram um obstáculo para que eu falasse com ela diretamente e com serenidade. Assim, hora após hora, íamos nos distanciando um do outro.

Os sete dedos da morteOnde histórias criam vida. Descubra agora