Sempre acreditei que era capaz de perdoar, de passar uma pincelada de tinta por cima e seguir com a vida. Mas a verdade é que a tinta não apaga nada do que se fez. A tinta apenas esconde, oculta o que foi feito aos olhos de quem queira. As palavras continuam gravadas no coração, as atitudes continuam a ser uma das maiores desilusões e a mágoa é só agora algo que preferimos não falar.
Tu foste um caso mais complicado. A tinta era demasiado transparente. E quando finalmente acertei com o número certo de demãos de tinta que eram precisas, a tinta teimou em saltar, em negar a superfície de aplicação. Doeste tanto, magoaste tanto que nem a tinta mais escura escondeu as feridas que deixaste.
Obrigaste-me a fazer de ti uma pintura nova nas paredes da minha casa. Foste a peça de arte em que provavelmente mais impecei na minha vida. Raspei vezes sem conta na quina da moldura, meteste-me com os nervos à flor da pele vezes demais por estares torto ou desenquadrado. Escondi-te na arrecadação ou até mesmo te deixei ao pé do contentor do outro lado da rua, mas ainda assim não me consegui livrar de ti.
Acabava sempre por ceder e endireitar-te ou trazer-te de volta para a parede que te pertencia. Doía mais ver aquela parede em branco do que bater contra ela todos os dias. Por muito que eu continuasse a achar que não encaixavas em nada do que era a decoração, eras na verdade a peça que condizia da melhor forma. Só tu sabias preencher aquela maldita parede em branco.
Então não me sobrou outra hipótese senão deixar-te ficar. Passei a não me encostar tanto à parede para não raspar em ti. Evitava sentar-me de frente para ti. Deixei de me importar se estavas quase a cair ou se estavas perfeito que nem uma obra de arte de um museu. Tornaste-te apenas mais uma peça que eu tinha na minha casa.
Não eras uma pintura bonita, mas também não eras feia. As tuas pinceladas ora eram violentas ora suaves. Havia vezes que me questionava porque raio te deixara ficar e não insistira em simplesmente te abandonar no sótão. Havia outras vezes em que te contemplava e pensava cá para mim que fizera bem em te deixar ficar, em te deixar lembrar-me.
Hoje já não são muitos que me perguntam de como ali foste parar, outros tantos deixaram de te mencionar e alguns já nem se lembram que ali estás. És apenas mais uma pintura na parede, uma que não me importo de ter. Quem sabe se um dia quando mudar de casa ou decidir trocar de decoração, seja capaz de me desfazer de ti. Por enquanto, felizmente ou infelizmente, vou deixar-te em exposição e aprender em não sentir remorso de como te tornaste um destaque daquela parede branca.
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O Meu Alter Ego
Randomalter ego | s. m. alter ego |é| (locução latina, de alter, altera, alterum, outro + ego, eu) substantivo masculino 1. Outro eu. 2. Pessoa em que se deposita a máxima confiança. Outra pessoa. Outro eu. Talvez o eu verdadeiro, talvez o eu imaginário...