Primo

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A arte alimenta-se de ingenuidades, 

de imaginações infantis que ultrapassam os limites do conhecimento; 

é aí que se encontra o seu reino. 

Toda a ciência do Mundo não seria capaz de penetrá-lo.

- Loinello Venturi

Aprile, 23

A alvura que o delineava era imaculada e por séculos sobrevivera a ruína. Enquanto grandes obras sucumbiram ao tempo e até mesmo o grande Colosso de Rodes ruiu, ele permanecia absoluto em vida. Não possuía um lugar para si na grande e aclamada Academia de Artes de Florença, mas projetava-se de forma límpida e bela onde seu escultor o havia deixado. Acolhido sob os braços de Santa Maria del Fiore, o Talento do Sul permanecia vívido para quem pudesse vê-lo.

Era a terceira semana que eu me via diante de sua forma perfeita. Sem um motivo específico, meus olhos se abriram para ele. Minhas manhãs começavam com pequenas esperanças de um dia perfeito, e as flores naquela primavera, maravilhavam Florença. Mas era crepúsculo quando me assentei no banco marmoreado diante dele.

A essa altura, já podia notar o movimento das pessoas que vinham, não apenas conhecê-lo, mas tocá-lo. Era diante dos sorrisos radiantes, carregados de fascínio, que eu me encorajava a esgueirar-me através das estreitas janelas da sanidade para senti-lo com minhas próprias mãos. Convencer a mim mesma do perigo de um simples toque era quase impossível, porque emanando dele eu podia sentir o ardil que me puxava para si de formas transcendentais.

Entregue a razão, eu resistia aos dias calorosos rodeados por uma atmosfera única, artística. Minha mente convencia ao restante de que qualquer sensação seria uma mera resposta aos pensamentos insanos que perambulavam durante as noites, na tentativa necessitada de imitar a realidade que eu tanto ansiava, sua humanidade.

O Talento do Sul possuía precisamente um metro e oitenta e um, se definido sobre o pedestal que o mantinha, a junção das duas partes somavam dois metros e trinta. A linha do mármore que o desenhava era sinuosa, e a pedra branca, mais polida do que nunca, resistia as avarias. Os amantes de seu período artístico ansiavam vê-lo, e mesmo os mais negligentes o observavam por minutos, quem sabe horas. Pois dentro de seus olhos imobilizados, carregava a curiosa história de um homem fascinado à perfeição que fora de alguma forma seduzido a não apenas favorecer, mas amar dentre todas suas obras, o imperfeito.

O pensamento dos grandes sábios defendiam ideais sobre a curiosa escultura inalterada, e até mesmo as pessoas se davam o luxo de explanar em suas mentes, concepções que explicassem o paradoxo. Michelangelo di Lodovico privatizava a perfeição, e de forma clara expunha-se. Através de suas obras defendia suas crenças do divino, e até mesmo o tão aclamado David provava sua verdade, uma obra-prima à Terra, era o que diziam.

Quanto ao deslumbrante Talento do Sul, o antagonismo que confundia as mentes humanas podia ser escrito em suas feições asiáticas, posto nos músculos não tensionados e exposto principalmente em suas bochechas. No caminho da pele lisa que descia sobre sua têmpora, onde se devia lapidar sublimes e impecáveis maçãs, esplendorosamente, encontravam-se côncavos.

Eu o via em visões enquanto passeava de volta para casa. Como uma forma divina, a estatura desenhada na pedra esbranquiçada, caminhava de forma sublime sobre os paralelepípedos da linda cidade, em dia de verão. Os olhos castanhos humanamente ilustrados e o corpo simétrico que se movimentava sob o julgamento de olhos inocentes, confusos. Pulcro e ataviado, exalando arte de si, de todas as frentes possíveis, provocava o mais puro êxtase. A verdadeira obra-prima concernente a Michelangelo.

Renascer ao Talento do SulOnde histórias criam vida. Descubra agora