"Você pode pensar que é homossexual e descobrir que é bi ou pensar que é bi e descobrir que é homossexual"
A desonestidade bifóbica desse discurso começa na confusão entre possibilidade e probabilidade.
Só porque algo pode acontecer (e "não se pode provar o contrário") não significa que vá.Exemplo: é possível que eu fique rica? Sim
Mas é provável? Não
Por que? Porque a construção das classes determina que quem nasce pobre morra pobre e quem nasce rico morra rico.É possível que homossexuais pensem/sintam que são bi? Até é, só que é improvável.
Nossa sociedade nunca disse "bissexuais existem, diferente de gays e lésbicas", disse apenas o exato oposto.
A comunidade queer nunca disse "homossexuais são bis encubados e violentos que precisam se aceitar", apenas o exato oposto.Até hoje não se tem casos o suficientes de gays e lésbicas achando que são bi pra pontuarmos uma demanda coletiva nisso, enquanto todos os bissexuais do mundo são alienados a pensar que são homossexuais/heterossexuais ao menos uma vez na vida.
Todos nós. All of us. Todos nosotros. Nous tous. Cem por cento. Sem excessões.
Ou seja, pra nós é um destino sistemático, não uma possibilidade remota.Quando se diz "olha, ambos os lados passam por tal coisa" se estabelece uma suposta semelhança, um grau de comparação.
Mas a comparação aqui não é justa, pois uma das situações se constitui na possibilidade e a outra na certeza. Tal comparação dá margem pra reforçarmos a idéia de que experiências bissexuais são experiências homossexuais rebuscadas & também dá margens pra reforçarmos a idéia de que a bifobia é um preconceito arbitrário com consequências subjetivas, e não uma opressão estrutural.É como dizer: "nesse país miscigenado, indígenas dizem que são brancos e brancos dizem que são indígenas".
Indígenas dizem que são brancos porque sofrem racismo, porque o etnocídio tenta os convencer de que eles não deveriam haver se não como figuras folclóricas; indígenas dizem que são brancos porque o simples reivindicar da indigenidade é considerado criminoso.
Já brancos dizem que são indígenas porque concordam com a premissa racista e etnocída de que dá pra "se fantasiar" de indígena pois a existência dos mesmos é "mitológica".
Entende a diferença?
As motivações não são nada similares pras situações serem consideradas parecidas.Enquanto os pouquíssimos casos de supostos "gays" e "lésbicas" costumam ser de pessoas que passaram meses dizendo "sou bi", temos infinitos bissexuais que passaram anos tentando se definir como "gays", "lésbicas", "apenas viado", "sapatão de um jeito confuso" e afins.
Muitos se negam a dizer bi porque são convencidos de que isso "une a comunidade queer", portanto "é por um bem maior". Outros fazem isso porque morrem de medo de dizer "sou bi" em espaços (entitulados) LGBTIA. Afinal, temos altíssimos índices de estupro e assédios dentro desses ambientes.Ano passado vi a notícia de uma cara que foi casado com uma mulher por cinquenta anos. Por cinquenta anos a relação foi de cunho sexual, eles inclusive procriaram. Mas ele não se sentiu à vontade pra dizer "sou bi", ele se sentiu à vontade pra dizer "sou gay" pra esposa, e eu repito: pra esposa dele. E pros filhos também.
Situações como essa mostram como gays e lésbicas são privilegiados quando postos ao nosso lado.
Se você diz "achei que fosse bi, mas sou homossexual" a reação do mundo é concordar que "era uma fase", é dizer "já era hora de assumir, não aguentava mais aquela palhaçada".
Se você diz "achei que fosse homossexual, mas sou bi" a reação do mundo é te colocar como alguém "lesbofóbico" e "homofóbico"; alguém que se odeia e está em negação; alguém que não valoriza o sangue derramado nas guerras queer contra o patriarcado e "fetichiza opressão"; alguém que "quer escolher ser queer apenas quando é conveniente". A reação do mundo é rir de você para todo o sempre porque ser bi é o patético, a lenda urbana, a imaturidade sexual.
Resumindo, dizer "sou bi, não gay/lésbica" soa como dizer "eu vejo unicórnios fantasmas andando entre nós". É assinar seu atestado de loucura numa sociedade que ergue manicômios.Mesmo que houvesse muitos gays e lésbicas que passam por uma "fase bi" (como eles chamam), isso só seria um fardo caso eles mesmos odiassem e tivessem nojo da idéia de ser bi.
Nós não somos Os Grandes Responsáveis pelo bem estar monossexual, não somos a Super Nanny escravizada deles. Se você se sente mal com a idéia de ser bi é porque a sua idéia do que é ser bi não é saudável, o que significa que não é a mesma concepção de bissexualidade que nós bissexuais cultivamos. Portanto, não somos responsáveis pelas consequências psicológicas disso.
O privilegiado precisa parar de pedir imunidade divina. Se você pensa coisas ruins, assim como qualquer ser humano mortal, eventualmente você se sentirá ruim por isso.