“as florestas de St. Andrew são escuras e cheias de segredos; lembram a Bailey por que quer ir embora desta cidade: está cansado de saber os segredos dos outros e de que eles conheçam os seus.”
Além disso,tem outra coisa, algo que, ultimamente, ele pensa assim que pisa no hospital. Não faz muito tempo que sua mãe morreu e ele se lembra vividamente de quando a removeram para a chamada eufemisticamente de “ala de recuperação”, para pacientes cujo fim está tão próximo que não vale a pena removê-los para o centro de reabilitação em Fort Kent. A função cardíaca caíra abaixo de 10% e ela lutava para respirar, a despeito da máscara de oxigênio. ele sentou-se com ela aquela noite, sozinho, pois era tarde os visitantes já tinham ido embora havia muito tempo. Quando ela tivera a última parada cardíaca, ele estava segurando a mão dela. Naquele momento ela estava exausta e se mexeu só um pouquinho; então, o aperto de mão se afrouxou e ela se foi tão silenciosamente quanto um pôr do sol ao anoitecer. O alarme do monitor soou quase ao mesmo tempo em que a enfermeira de plantão entrava, mas Bailey alcançou o botão do monitor e, sem pestanejar, fez sinal para a enfermeira sair. Tirou o estetoscópio do pescoço e verificou o pulso e a respiração. Ela havia partido.
A enfermeira de plantão perguntou se queria um minuto a sós e ele disse que sim. Passara a maior parte da semana na unidade de terapia intensiva com a mãe e parecia-lhe inconcebível simplesmente ir embora naquele momento. Então, sentou-se ao lado da cama e olhou para o nada, com certeza não olhou para o corpo, e tentou pensar nas providências a tomar. Ligar para os pacientes; todos eram fazendeiros que viviam na parte sul do condado... Ligar para o padre Lymon da igreja católica que Bailey não frequentava... Escolher um caixão... Precisava pensar em tantos detalhes... Ele sabia o que precisava ser feito, pois passara por tudo isso apenas sete meses antes, quando seu pai morrera. Mas a ideia de passar por tudo aquilo de novo era desanimadora. Era em momentos como esse que sentia mais falta de sua ex-mulher. Era muito bom poder ter Shivani, uma enfermeira, em ocasiões difíceis. Ela não era do tipo sentimental; era prática até mesmo diante do sofrimento.
Esse não era o momento de desejar que as coisas fossem diferentes. Agora estava sozinho e teria que administrar. Ruborizou de vergonha, sabendo que sua mãe queria que ele e Shivani ficassem juntos; quantas reprimendas ouviu por tê-la deixado ir embora. Olhou para a mulher morta, viu um reflexo de culpa.
Os olhos dela estavam abertos. Há um minuto, estavam fechados. Sentiu seu peito apertar com esperança, mesmo sabendo que isso não significava nada. Somente um impulso elétrico percorrendo os nervos no momento em que as sinapses paravam de acontecer, como um carro pipocando quando a última fumaça de gasolina passa pelo motor. Ele esticou as mãos e fechou as pálpebras dela.
Elas se abriram naturalmente uma segunda vez, como se a mãe dele estivesse acordando. Bailey quase pulou para trás, mas conseguiu controlar o medo. Não, medo não, surpresa. Em vez disso, inclinou-se, colocou o estetoscópio e pressionou sobre o peito dela. Silêncio, nenhum fluxo de sangue nas veias, nenhum vestígio de respiração. Tomou seu pulso. Sem pulso. Olhou para o relógio: já havia passado quinze minutos desde que declarara sua mãe morta. Abaixou a mão fria da mãe, incapaz de parar de observá-la. Jurava que ela estava olhando de volta, os olhos grudados nele.
E, então, a mão dela ergueu-se do lençol e o alcançou. Esticou-se em direção a ele, palma para cima, implorando para que ele a segurasse. Ele a segurou, chamou-a pelo nome, mas, assim que tocou sua mão, deixou-a cair. Estava fria e sem vida. Bailey deu cinco passos para trás da cama, esfregando a mão na testa, imaginando se estava tendo alucinações. Quando se virou, os olhos dela estavam fechados e, o corpo, imóvel. Ele mal podia respirar, seu coração batia na garganta.
Levou três duas para ter coragem de falar sobre o que acontecera com outro médico. Escolhera o velho John Mueller, um clínico geral pragmático, conhecido por ajudar seu vizinho quando as vacas pariam os bezerros. Mueller olhou-o desconfiado, como se suspeitasse que Bailey tivesse bebido.
— Mexer os dedos das mãos e dos pés, sim, isso acontece — ele dissera —, mas quinze minutos depois? Movimento muscoloesqueletal? — Mueller olhou para Bailey novamente, como se o fato de estarem conversando sobre aquilo já não fosse motivo de chacota. — Você acha que viu porque queria ver. Não queria que ela tivesse morrido.
Bailey sabia que não era isso. Mas não tocaria nesse assunto de novo, pelo menos não entre médicos.
— Além disso — Mueller quisera saber —, que diferença faz? O corpo pode ter mexido um pouco; acha que ela estava tentando dizer alguma coisa a você? Acredita naquela coisa de vida após a morte?
Pensando nisso agora, quatro meses depois, Bailey ainda sentia um leve calafrio percorrendo os braços de cima a baixo. Coloca o Sudoku na mesinha e passa os dedos pelos cabelos, tentando fazer a confusão ir embora com uma massagem. A porta que dá para o vestiário se abre numa fresta: é Judy.
— Noah está estacionando.
Bailey sai sem a parca, para que o frio acorde. Observa Urrea estacionar perto do meio-fio em uma grande SUV pintada de branco e preto, uma insígnia do estado do Maine nas portas da frente e uma discreta barra luminosa grudada no teto. Bailey conhece Urrea desde garoto. Não estavam no mesmo ano escolar, mas o horário de algumas aulas coincidia na escola.
Com as mãos enfiadas debaixo das axilas, para aquecê-las, Bailey observa Urrea abrir a porta de trás e pegar o braço de uma prisioneira. Está curioso para ver a fora da lei. Talvez seja uma mulher grande, de modos masculinos, com o rosto vermelho e lábios cortados. Então fica surpreso ao ver que a mulher é pequena e jovem. Poderia se passar por uma adolescente. Esguia e de feições infantis, com um lindo rosto e uma vasta cabeleira loira.
Olhando para a mulher (garota?), Bailey sente uma estranha fisgada, um formigamento atrás dos olhos. Seu pulso acelera, parece que a conhece. Não sabe o nome, mas sente algo muito mais intenso. O que é? Bailey dá uma olhada com os olhos semicerrados, estudando-a mais de perto. Será que já a viu em algum lugar antes? Não, ele percebe que está equivocado.
Enquanto Urrea puxa a mulher pelo braço, as mãos amarradas com algemas de plástico, uma segunda viatura da polícia estaciona e um agente, Josh Beauchamp, sai e acompanha a prisioneira para dentro da sala de emergência. Enquanto passam, Bailey vê que a camisa da prisioneira está encharcada, manchada de preto e exala um odor conhecido de ferro e sal, o cheiro de sangue.
Urrea anda em direção a Bailey, apontando com a cabeça para o casal.
— Encontramos ela desse jeito, caminhando pela estrada em direção a Fort Kent.
— Sem casaco? Sem casaco nesse frio? Não pode estar vagando há muito tempo.
— Sim. Escute, preciso que você me diga se ela está machucada ou se posso levá-la de volta à delegacia e prendê-la.
Até onde conhecia os agentes da lei, Bailey sempre suspeitara que Urrea fosse mão pesada; já vira muitos bêbados serem trazidos com galos na cabeça ou escoriações no rosto. Essa garota, ela é só uma criança, o que poderia ter feito?
— Por que ela vai ser presa? Por não usar casaco com um frio desse?
Urrea, desacostumado a ser motivo de piada, lança um olhar cortante a Bailey.
— Essa garota é uma assassina. Ela nos disse que matou um homem a facadas e deixou o corpo na floresta.
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Ladrão de Almas [Joaley adaptation]
RomanceDe um lado um romance histórico, de outro uma narrativa sobrenatural. Ladrão de Almas é uma história inesquecível sobre o poder do amor incondicional, não apenas para elevá-lo e sustentá-lo, mas também para cegar e destruir. E revela como cada um de...