"Não há paixão mais egoísta do que a luxúria."
— Marquês de Sade
O ruído ensurdecedor do caminhão que passou pela estrada deserta quase foi o suficiente para derrubá-lo no chão.
Já era noite, nos arredores de uma antiga plantação que foi abandonada e transformada pela natureza até ficar irreconhecível; desleixada, cheia de mato e pragas, com folhas ultrapassando a cerca de arame que anunciava a rodovia.
Ele cambaleou por ali até conseguir ajustar a visão aos faróis cintilantes que surgiam vez ou outra, agressivos. Tudo era diferente. Desde o cheiro peculiar até a textura das coisas. Tão diferente do lugar onde passou a maior parte de sua eternidade.
Havia sangue fresco em suas roupas — seu sangue, que continuava fluindo pelas veias corpo afora até manchar cada pedaço de tecido. As mangas estavam em trapos. A calça era um emaranhado de fiapos e sujeira. Quem o visse naquele estado poderia acreditar que era um fugitivo de guerra.
Quando chegou à Terra, era praticamente isso. Mas desnudo, com cada parte de pele completamente à mostra, até encontrar uma cabana no meio do nada e conseguir algumas roupas penduradas num varal improvisado do lado de fora.
Antes de ir, no entanto, um tiro de espingarda perfurou suas costelas. Depois, outro abriu uma ferida profunda em seu peito. Ao final da fuga, metade de tudo que vestira no corpo pendia em fiapos, cravados vigorosamente entre os dentes dos cachorros que rondavam a propriedade.
Poderia ter sido mais fácil, mas era tudo muito novo. Assustadoramente novo. Conhecia o Inferno como a palma da mão, mas nenhum dos cantos daquele lugar tenebroso sequer chegava perto do que o cercava agora.
Sempre imaginou como seria a Terra quando finalmente a conhecesse. Nunca conseguiu decifrar, embora fosse bastante criativo. Agora que estava aqui, não tinha palavras para descrever como se sentia.
Era liberdade, de alguma forma. Finalmente liberdade. A liberdade com que sonhou acordado durante todos os séculos de sua vida. Por outro lado, era também mistério e ameaça. Medo. Receio. Incerteza e hesitação.
Mais alguns passos arrastados pela beira da rodovia e a gravidade o derrubou. Seus pés estavam em cacos, machucados pelas pedras e pelos cascos de árvore caídos pelo caminho que fez até ali. Outro caminhão passou rente ao seu corpo quase moribundo, debruçado no chão. A buzina grave e os faróis altos o fizeram perder os sentidos por um minuto.
Depois, a pancada de uma porta e o som abafado de botas andando pelo asfalto.
— Ei! — o homem gritou antes de se aproximar. Se ele apenas soubesse quem estava prestes a socorrer, talvez nunca tivesse cortado a distância que os separava. — Tá perdido, cara?
Os olhos brilhantes da Luxúria jamais estiveram tão apagados. Daquele jeito, quase parecia um humano; os nós dos dedos sujos de terra, assim como as unhas, as roupas em farrapos e a mão cobrindo a ferida no peito na tentativa de estancar o sangue. Um gemido de dor e a boca manchada de vermelho, inundada pelo sabor amargo da morte.
Desde o começo, nunca esteve tão perto do fim.
— Puta merda, você está sangrando! — o grunhido do caminhoneiro atingiu seus ouvidos ainda sensíveis e disparou dentro deles um sonar estridente.
A cabeça girando, os olhos fora de foco. Tudo era intenso demais para seu estado de semiconsciência suportar. Era como um recém-nascido que conhecia o mundo pela primeira vez.
— Eu vou chamar uma ambulância...
O homem fez menção de se levantar, talvez na iminência de correr o percurso todo de volta ao caminhão, mas seus joelhos mal tiveram a chance de se estender antes que os dedos curtos e impregnados de sujeira segurassem seu pulso.
Então, os olhos cinzentos se ergueram pela primeira vez, fervorosos, cheios de um brilho surreal. Poderoso. Inevitável. Sedutores como só os olhos da luxúria poderiam ser.
Nada precisou ser dito. Nada precisou ser explicado.
Porque, sob aquele olhar, o mundo inteiro saberia o que fazer.
Seus lábios se aproximaram como polos diferentes de um imã, entrelaçados por uma força misteriosa, obscura e inexorável. Não havia lugar para lucidez ou ponderação. Era apenas puro magnetismo, o feitiço do pecado em sua forma nua e crua.
O aperto no pulso se desfez. Já não era mais necessário. Assim, a mão pequena subiu sorrateiramente até pousar no rosto do caminhoneiro. Uma onda de energia atravessou o corpo do homem e fluiu de sua boca até encher os lábios da Luxúria com cada fragmento de sua essência lasciva e imoral.
Cada lembrança inflamada pela cólera, incontinência e tentação, cada única memória corrupta e depravada, agora já não pertencia mais a ele. A luxúria havia tomado cada dose do veneno com a sede de mil homens, sem se importar com o gosto amargo dos vícios e das paixões desenfreadas.
No final das contas, esse era seu sabor preferido. O sabor que enchia sua vitalidade e curava suas feridas como clorexidina¹.
Quando o beijo se partiu, já não havia mais úlcera, dor ou agonia. Nem mesmo um único hematoma, ou cicatriz. Tudo havia desaparecido na mesma velocidade em que aparecera. As roupas rasgadas e ensanguentadas seriam as únicas testemunhas da violência que o recepcionara.
O homem foi deixado em estado quase catatônico, à beira da estrada, e ali ficou pelos trinta minutos que se seguiram. Mais tarde, o episódio seria apenas uma vaga lembrança, um delírio, uma alucinação.
A Luxúria era como uma droga entorpecente. Como um sonho intenso do qual não se pode mais lembrar depois das primeiras vinte e quatro horas acordado. Era um anestésico poderoso, perigoso e irremediável.
Mas era, acima de tudo, um demônio. Um demônio livre.
E nem mesmo Deus ou o Diabo pôde prever o que aconteceria quando um Pecado Capital finalmente andasse sobre a Terra.
¹Clorexidina: É um antisséptico químico com ação antibacteriana contra bactérias gram positivas e gram negativas. Remédio com ação antimicrobiana, que evita a proliferação de bactérias na pele e nas mucosas.
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Libidine ❦ Jikook
FanfictionMantido em cativeiro no próprio inferno por quase um milênio, Park Jimin, o sétimo Pecado Capital, consegue sua passagem apenas de ida para a Terra, onde planeja recuperar os anos de atraso naquilo que sabe fazer de melhor. E é em uma de suas aventu...