CAPÍTULO 3

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Estou sentado junto a mesa da cozinha de casa com a agenda aberta em minha frente na página que separei para fazer a investigação sobre David e Felipe. Agora eu adicionei um ponto:

1 - Os amigos de Felipe também não sabem o que aconteceu.

Ainda estou intrigado com tudo isso, como pode ninguém saber como tudo isso aconteceu? Quando você gosta de alguém não conta pelo menos aos amigos? Será que David e Felipe estão apenas fingindo namorar? Se sim, por quê?

Decido adicionar isso ao caderno, apenas como suposição para investigação.

— O que você tá fazendo aí? — Meu pai pergunta se inclinando na mesa.

Ele e a minha mãe estão preparando o jantar juntos. Gabriele minha irmãzinha de dois anos está sentada na cadeirinha dela ao meu lado brincando com blocos coloridos — ela é bem mais parecida com meu pai do que eu, apesar de ter a pele negra ela é um pouco mais clara do que eu e tem o cabelo louro como o meu pai. Meu cabelo é crespo e faz mais de um ano que eu mantenho pequenos dreads nele, na parte da frente eles caem sobre a minha testa como uma franja. Quando eu era pequeno ficava um pouco chateado porque as pessoas sempre comentavam como meus primos — principalmente David — são mais parecidos com o meu pai do que eu. Hoje em dia eu não ligo tanto assim.

— Eu decidi que vou investigar como o David começou a namorar o Felipe V! — Digo sorrindo, meu pai dobra os braços em frente ao corpo.

— E por que você não pergunta a ele? — Meu pai questiona.

— Eu não quero parecer enxerido e também não quero que ele pense que estou julgando — digo. — Pai, a tia Pami não comentou nada com você?

— Nadica de nada — ele responde voltando para a pia e parando ao lado da minha mãe.

— Porque você não pergunta a ela? — Minha mãe diz, seu cabelo está amarrado em um coque no alto da cabeça. — Vocês sempre foram tão unidos.

Meu pai tem três irmãos, Pamila é a mãe de David e pelo que meu pai nos conta os dois sempre foram mais unidos entre eles do que com os outros irmãos.

— Pelo mesmo motivo dele — meu pai diz se virando e apontando para mim, nós rimos juntos o que faz Gabriele gritar animada.

Minha mãe limpa as mãos no avental e se vira para mim.

— Filho se você gostar de garotos ou garotas, nós não vamos te julgar, tudo bem? — Ela diz. — Pode confiar na gente.

— Não se preocupe que quando você namorar nós vamos fazer você passar vergonha na frente da pessoa, seja uma mina ou um cara! — Meu pai diz apontando o dedo indicador para mim.

— Pai você já me faz passar vergonha sem que eu namore, pare de usar gírias!

Os dois riem, e eu volto a olhar para a minha agenda.

Estou no meu quarto depois do jantar quando a mensagem de Júlio chega. Eu só sei que é ele por causa do que está escrito no texto que ele me manda:

Vamos começar a investigação amanhã, acho que sei onde devemos ir.

Leio a mensagem umas duas vezes enquanto fico esperando que ele mande mais alguma coisa, talvez dizendo onde e quando iremos. Mas ele não diz mais nada.

Bem que eu sempre pensei que os valentões são bem estranhos.

Uma curiosidade: em Santa Cicília não há sequer um histórico ou testemunho de alguém do grupo dos valentões praticando bullying com qualquer aluno que seja — algo assim pode ter acontecido há muito tempo, tipo nos anos 80, mas pelo menos hoje ninguém que estuda aqui pode dizer que sim.

Os valentões são mal encarados, brigam com qualquer um que arrumar confusão com eles, mas nunca atacam pessoas inocentes pelo simples prazer de fazer isso.

Isso é bem estranho olhando pelo que se pode pensar de um "valentão", mas o trabalho de importunar os jovens inocentes em Santa Cicília sempre foi das patricinhas. Provavelmente existe um algoz para cada nerd, o meu algoz especial é o Souza Miranda.

Souza é da minha idade e para o meu azar é meu colega de classe, desde que entrou em Santa Cicília ele já estava sendo cotado para ser uma patricinha porque ele era famoso como jogador de futebol na escola anterior, e a fama o seguiu até nossa amada instituição. Eu não consigo me lembrar de um período de pelo menos um mês em que Souza Miranda tenha passado sem: me empurrar contra a parede, jogar minhas coisas no chão, fazer uma piadinha racista ou mandar uma mensagem de amor para Karen Kódigo do grupo de teatro em meu nome e contando isso para a escola toda.

Quando se trata do trabalho de fazer com que eu me sinta mal por existir, Souza Miranda se força até o seu limite!

Acontece que com todo esse burburinho sobre David e Felipe estarem namorando eu realmente acreditei que ficaria em paz nesses últimos dias de aula, então quando entro na escola nessa quarta-feira levo um tremendo susto quando Souza Miranda aparece como que do nada e me prende contra a parede.

— Presta atenção Gardênia! — Ele diz, como se eu já não o estivesse encarando segurando minha respiração com medo de que o simples ato de puxar oxigênio para os meus pulmões pudesse deixá-lo com raiva. — Preciso de um trabalho de Biologia com os principais conceitos para sexta-feira, é melhor se esforçar porque eu preciso disso para não reprovar.

— Tudo bem — quase que sussurro.

— Que bom que você entendeu, faça seu trabalho bem direitinho e ano que vem nós poderemos ter um último ano maravilhoso! — Ele diz e me empurra mais uma vez antes de sair pelo corredor desfilando como se fosse um modelo em uma Fashion Week qualquer.

Respiro fundo e arrumo minha camisa antes de voltar a andar. Paro no bebedor e tomo um gole d'água.

Júlio está parado ao lado da porta da minha sala. Ele está no segundo ano como eu — apesar de que ele é um ano mais velho, aparentemente ele tomou bomba no primeiro ano —, mas faz parte de outra turma. Paro do outro lado da porta deixando a passagem livre caso alguém queira entrar ou sair da sala.

— Ei — digo segurando as alças da minha mochila.

— A gente vai sair no fim da aula, me encontre do lado de fora da escola — ele diz sem rodeios.

— Onde nós vamos?

— Você vai ver — ele diz, seco. — Te vejo depois.

Quando ele se vira para sair a ideia se passa pela minha cabeça, eu corro e me posiciono em sua frente.

— Ei Júlio... — eu digo e ele me encara confuso.

Júlio F tem uma aparência bastante marcante: ele tem os olhos puxados, as sobrancelhas grossas e a pele bronzeada, ele está sempre usando roupas pretas — como todos os valentões —, brincos prateados, uma touca preta na cabeça e tem um bigodinho fininho acima dos lábios. É bem difícil encará-lo sem que o corpo todo trema de medo, mas por algum motivo eu consigo fazer isso nesse momento.

— Então, eu tava pensando e... — solto um risinho de nervoso, é não sou tão forte como pensei. — Como nós vamos trabalhar juntos, será que eu posso dizer por aí que sou seu amigo, só para as patricinhas me deixarem em paz?

Ninguém mexe com os valentões e tenho certeza de que não mexeriam com um amigo deles — nunca aconteceu esse tipo de coisa antes, afinal os grupos nunca se misturam, mas talvez pudéssemos ser os pioneiros. Quer dizer, não tão pioneiros assim. Silva Castilho, o co-capitão do time de vôlei que sempre atacou David, deve estar passando por uma crise de identidade nesse exato momento, sem poder encher o saco do meu primo.

— Não! — Júlio diz na lata, sem parar para pensar. — Só estamos trabalhando juntos, eu não vou proteger você!

E sai andando me deixando sozinho no corredor. Não custava nada tentar!

A Que Ponto Chegamos? 1 - DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora