Ventania
Eu sinceramente não sei se teria conseguido passar pela pandemia sem ajuda. Chegou um momento em que eu não conseguiria nem mesmo apostar sobre o que poderia acontecer. Se a quarentena teria fim ou não. O que ajudou a piorar meu estado foi o fato da companhia de internet ter simplesmente perdido o meu cadastro dois meses antes do surto e não ter conseguido me enviar as últimas faturas para que eu pudesse pagar. Parece até que foi programado. Assim que a quarentena começou, cortaram a internet e eu, a louca viciada nos vídeos de gatinhos fofos, fiquei presa em casa sem conexão, sem contato com ninguém. Reservada e com uma certa fobia social, até pensei que seria fácil passar por aquilo, mas eu estava tão enganada.
Ficar presa com a vovó não foi nada ruim, na verdade. Ela sempre tem uma história para contar. Sacis, duendes, bruxas, cucas, toda hora ela culpava uma criatura diferente pelo surgimento do coronavírus e me explicava os motivos místicos de tal ser tê-lo criado. Fiquei sabendo de tantas histórias que agora me sinto apta para escrever o novo Harry Potter. O ruim foi quando ela adoeceu e parou de falar. Eu juro, meu coração nunca apertou tanto, nem quando a Lola, minha cachorra que cresceu comigo, se foi. Cheguei a pensar no pior, tamanhas eram as más notícias na TV. Rezei pra santo que nem sei o nome, acendi vela, fiz simpatia. Até cantei uma das músicas que a vovó me ensinou para pedir ajuda ao vento. Sim, ao vento. Eu estava desesperada, tá? Enfim... Foi no décimo segundo dia de quarentena que ela chegou.
Eu estava na varanda. Um cheiro forte de terra molhada inundou o ar como em um dia de chuva forte. Mas não chovia. O vento soprava agressivamente e o barulho das folhas ajudava meu coração a se acalmar. Vovó tinha finalmente dormido e eu estava um caco, me sentindo sozinha como jamais pensei que fosse sentir, com medo e perdida. Abaixei para pegar um lacinho de cabelo que tinha escorregado pelo meu pulso e quando me levantei, parei no meio do movimento de amarrar os fios. É que uma garota me olhava da ponta do último degrau da varanda. Seus cabelos pretos como o céu sem estrelas, extremamente longos, dançavam no vento junto com sua roupa larga de tecidos leves. Ela sorria como quem quer acalmar uma criança em crise e seus olhos mel ficavam apertadinhos enquanto me olhava. Parecia uma hippie recém-saída de um festival de música.
— Boa noite. — Ela ergueu uma cesta que carregava em um dos braços. — Aceita uma maçã?
— Quê?
Eu entendi a pergunta dela, na ocasião, mas fazia um bom tempo que não via alguém andando na rua sem máscara e de repente aquela garota brotou ali me oferecendo uma fruta. Sabe? Estranho. Tá, não foi só por isso que fiquei meio perdida. É que ela era linda de uma forma que eu nunca tinha visto. Fiquei meio boba, não sei. Beeeeem boba. Boba mesmo.
— Uma maçã. Tenho muitas. Você quer uma?
— Não... Obrigada...
Sem ser convidada, ela subiu os outros dois degraus e se aproximou de mim.
— Por acaso você está triste? — Seu sorriso diminuiu para uma expressão atenta.
— Eu... Quem é você?
— Me chamo Isis e você?
— Oi. Sou a Maria Alice.
— Você tem dois nomes?
— Sim, por quê?
— É que nossos nomes são nossos maiores presentes. E você tem dois. — Ela deixou sua cesta no chão e se sentou na cadeira ao meu lado. — De qualquer forma, obrigado por ter compartilhado os dois comigo.
Era só o que me faltava, uma louca. No meio de uma pandemia, quarentena, doença sem cura, uma louca. Meu Deus, minha vida realmente devia estar prestes a acabar, pensei.
— Me dá a sua mão — pediu, estendendo a sua para mim.
— Menina, sem querer ofender, não sei se você tem TV em casa. O movimento do "ninguém solta a mão de ninguém" deu uma parada e agora o movimento é "ninguém toca em ninguém".
Ela tombou a cabeça para o lado como se eu estivesse falando em outra língua.
— Não tocar em ninguém não é saudável. Precisamos nos tocar. — Ela olhou para as árvores do gramado de frente de casa e apertou os olhos redondos. — Imagina só se os pássaros não tocassem nas árvores. Eles não espalhariam sementes por aí e não teríamos outras árvores.
Lembro-me de ter pensado em pedir pra ela ir embora, mas não sei, não foi por sua beleza, foi o seu jeito que fez eu me segurar. Sua forma de sorrir era cativante, sua suavidade ao se mexer me fazia prestar atenção em cada movimento e sua voz transmitia paz. Eu não queria mesmo que fosse embora. Fazia mais de dez dias que não falava com alguém que não fosse a minha avó e era bom conversar com outra pessoa. Sobretudo, com alguém tão diferente como ela.
— Onde você mora, Isis? A cidade é tão pequena e não me lembro de ter te visto por aqui antes.
— Eu saio pouco. Minha mãe se preocupa de mais com as filhas.
— Ah, você tem outras irmãs.
— Sim, muitas.
— Quantas?
— Muitas. Você também tem?
— Não. Sou filha única.
Ela se levantou e pegou a cesta do chão.
— Pegue, coma uma maçã antes de ir dormir. Dê outra para sua avó. Eu as colhi na floresta e lá não tem essa praga que está matando gente por aí.
— Como sabe que tenho uma avó? — Eu me encolhi na cadeira.
— Todo mundo conhece a sua avó. Ela é bem famosa por aqui, não é?
— Sim, acho que sim.
Ela estendeu o braço para me entregar a cesta de maçãs e quando fui pegar, segurou minha mão com a sua livre em um movimento rápido.
— Ei! — Tentei me soltar, mas ela era muito mais forte que eu.
— Isso tudo vai passar logo, não se preocupe. Comam as maçãs. Volto para te ver amanhã.
Sorrindo e soltando a minha mão, deu dois passos para trás, ainda me olhando nos olhos e depois se distanciou até sumir por entre as árvores.

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Vai ficar tudo bem
Teen FictionO período de isolamento social já é difícil por si só. Com a quantidade de notícias tristes ao redor de todo o mundo, então, nem se fala. É muito fácil ficarmos pessimistas, desesperançosos e alarmados. É difícil enxergarmos o fim do pesadelo e serm...