Pela primeira vez em 137 dias, não preciso ir até a varanda do meu apartamento para olhar a rua. Refaço com ansiedade o caminho que há tanto tempo não fazia, deixando que os meus pés escorreguem pelo porcelanato do corredor em direção às escadas e sigo desse mesmo jeito até a guarita do prédio, como se cada instante até os portões tivessem que ser registrados com a maior quantidade possível de detalhes na minha memória.
Vejo pessoas por todos os lados. Algumas parecem tão atônitas quanto eu, mas a maioria está gritando e correndo pelas calçadas, trocando beijos, abraços e apertos de mão, festejando o final de uma quarentena prolongada, enquanto carros passam pelas ruas buzinando, enfileirados, como se estivessem num desfile presidencial. Meu primeiro instinto é pensar que ninguém aprendeu nada com o isolamento, mas, apesar do receio, sei que entre nós não há risco de infecção.
No início não foi tão difícil. Alguns ainda saíam de casa para ir ao supermercado ou à farmácia, mas, eventualmente, as ruas ficaram completamente vazias. Eu nunca tinha visto nada como aquilo.
Todas as noites, os vizinhos se reuniam nas varandas e janelas para o que minha mãe chamava de momento em comunidade, e foi assim que eu conheci a Cecília. Eu já a tinha visto algumas vezes entrando ou saindo do prédio da frente, e sei que ela frequenta a mesma universidade que eu, mas a primeira vez que nos falamos foi durante a pandemia. Nunca chegamos a trocar números, porque as operadoras de telefonia também pararam de funcionar. Às vezes eu passava o dia inteiro na janela do meu quarto, esperando para vê-la. Sempre que ela aparecia, meu coração batia tão acelerado que eu achava que estava tendo uma taquicardia.
É como me sinto assim que a vejo do outro lado da calçada. Quando seus olhos me encontram e ela sorri, tenho certeza de que o pesadelo terminou. Atravesso a fila de carros na rua e vou até ela. Quero segurar suas mãos, abraçá-la e beijá-la, mas não sei se devo.
— Sobrevivemos! — Cecília diz, eufórica. Procuro por sinais de que posso me aproximar e tocá-la, mas ela pula no meu pescoço antes que eu consiga sair do lugar.
— Sobrevivemos! — repito baixinho.
Envolvo os braços ao redor dela e fecho os olhos, respirando seu perfume. Suas mãos estão no meu pescoço, quentes e macias, e por um segundo eu acho que ela vai me beijar. Fecho os olhos quando seus lábios encostam na minha bochecha e aperto sua cintura, sentindo minhas pernas fraquejarem. Torço para conseguir controlar o tempo, aqui e agora, só para viver esse momento por mais alguns minutos.
Cecília é alguns centímetros mais alta do que eu, o que me deixa ligeiramente inseguro. Seu cabelo está solto numa confusão de cachos e eu tenho que fazer mais esforço do que pensei ser possível para não cair na tentação de mergulhar o meu rosto nele. Essa é a primeira vez que a vejo tão de perto e acho que nunca mais vou me esquecer dos seus olhos castanhos.
Não sei quase nada sobre ela, exceto as coisas mais básicas. Seu nome, sua idade, o que ela cursa na faculdade e o que gosta de fazer no tempo livre – principalmente essa parte. É difícil conhecer os segredos de alguém quando você precisa gritar para que te ouçam do outro lado da rua.
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Vai ficar tudo bem
Novela JuvenilO período de isolamento social já é difícil por si só. Com a quantidade de notícias tristes ao redor de todo o mundo, então, nem se fala. É muito fácil ficarmos pessimistas, desesperançosos e alarmados. É difícil enxergarmos o fim do pesadelo e serm...