Até a meia-noite, pt. 2, por Renato Jardim

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O fim da quarentena

Lembro-me de ter lavado bem as mãos e as maçãs quando entrei em casa. Lembro-me de ter visto a vovó comendo uma das frutas no dia seguinte também. E me lembro de pensar se foi coincidência ou não o fato da vovó começar a mostrar melhoras logo depois disso. Mas coincidência ou não, passei a esperar Isis na varanda, toda noite, mais animada. Ela chegava sempre ao cair do sol e ficava por mais ou menos quarenta minutos me fazendo as perguntas mais esquisitas possíveis. E esquisita ou não, ela fez com que eu conseguisse ficar mais animada no meu confinamento. Eu me abria com ela sobre a dificuldade na faculdade de agronomia, sobre a incerteza de morar no interior com a vovó para estudar, sobre minha ansiedade. Ela sempre ouvia tudo e com seus exemplos exóticos, citando árvores, flores e pássaros, acabava me dando conselhos que faziam total sentido. Isis, definitivamente, foi a responsável por eu não enlouquecer naqueles dias.

— O governo declara oficialmente o fim da quarentena. O vírus está controlado e os postos de saúde se preparam para mais uma semana intensa de vacinação.

Eu e vovó até pulamos do sofá quando escutamos a jornalista do jornal noturno. Sim, a vovó já até conseguia pular de novo. Por milagre ela teve apenas os sintomas mais leves da doença, que não chegou a atingir seus pulmões.

— Dessa vez o Dué não me levou! E nem as minhas amigas! Todas bem! Esse duende não desiste. Se prepara, minha filha, que ele ainda vai atacar de novo. Já acabou com o mundo uma vez, aquela peste.

Eu só ria das conclusões dela, como sempre.

***

— Amiga, sei lá, tem certeza que não inventou essa garota?

Lana e eu estamos sentadas aqui na praça desde que voltamos do hospital.

— Já procuramos por essa garota na faculdade, na casa dos seus vizinhos, até no hospital! Se ela realmente mora aqui, alguém tem que conhecer, não é possível!

Pois é, Isis sumiu. Desde o dia em que anunciaram o fim da quarentena, ela não apareceu mais. Estou a dias indo de um lado para o outro com Lana sempre que saímos da faculdade. E nada.

— Eu sou muito burra! Como que não perguntei um sobrenome, um endereço, nada? — Prendo meus cabelos em um rabo de cavalo. — A garota sabe da minha vida inteira e só agora percebo como fui egoísta e não perguntei nada sobre ela. Não sei nem se tinha alguém na família dela que estava infectado, não sei de nada.

Sinto-me mal por ter sido tão egoísta. Isis me salvou e eu sinto que não fiz nada por ela.

— Se quiser, podemos procurar nas cidades vizinhas. Só não sei quando porque temos um milhão de aulas pra repor. — Lana olha o relógio em seu pulso — Preciso ir. Vamos visitar minhas tias hoje. Elas estavam muito preocupadas com a gente.

— Vai lá, amiga.

Lana começa a se distanciar e de repente se vira para mim.

— Tá apaixonada por ela, né?

— Ah, vai deitar, Lana!

Ela ri e se afasta.

Começo a caminhar de volta para casa. É tão bom ver as pessoas andando de um lado para o outro saudáveis, apressadas, vivas. Eu sempre tive um problema social muito grande, sabe? Sempre tive muita dificuldade de me aproximar. Mas a quarentena me mostrou como estar com as pessoas me faz bem, como uma simples conversa pode mudar o dia de alguém, como as palavras e a presença física são importantes. Sou outra pessoa agora. Sinto vontade de ajudar, de fazer a diferença, sabe? E vou fazer. Ainda não sei o quê e nem como, mas vou. Antes eu preciso que a Isis saiba o quanto me ajudou, o quanto me mudou. Preciso encontrá-la.

Estou tão pensativa que nem percebo que passei do caminho de casa. Noto que estou parada diante do início da floresta que rodeia a cidade. Ela fica bem no final do quintal dos fundos de casa. A minha avó nunca me deixou entrar na floresta desde que era pequena. Guardei esse medo a vida toda. Mas pensando agora, e se Isis mora mais afastada daqui? Em uma fazenda dessas que ficam no meio do nada? Eu nunca nem caminhei nessa direção da cidade. Até quando uma bola minha caía na floresta, eu deixava pra lá. Sempre soube como a vovó temia o que quer que seja que vive aqui. Quando era criança e vinha visitá-la, ela me forçava a andar com as meias do avesso, com sal no bolso e acessórios de ferro para me proteger da floresta. Mas Isis pode morar pra esse lado. Não custa dar uma olhada.

Vai ficar tudo bemWhere stories live. Discover now