IV- Quatro horas

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Após quase dois meses já havia virado rotina acordar com Luccas e meu pai cantando no andar de baixo, já considerava o garoto mais velho um irmão adotado, todos os dias chegando cedo, quase mandara meu pai comprar para ele uma cama na manhã passada, quando ele chegou antes mesmo que o sol houvesse nascido, mas não era tempo para mau humor, assim como minha rotina de acordar cedo, caminhar com Diana se tornou um hábito, apesar do pai sempre deixar claro o quanto não gostava de mim ou de que acompanhasse sua filha até sua casa. Para nossa sorte ele não podia a prender em casa, ou vigiar suas companhias durante todo o dia, apesar de um pouco arriscado nossos passeios por Londres sempre acabavam bem, claro, um pouco mais triste para mim que a via ir embora todos os dias. Não é como você pensa, não éramos tipo namorados ou algo assim, apenas bons amigos e nada mais, ela havia deixado claro em um de nossos passeios que estava nova demais para pensar nisso, que queria conhecer o mundo antes de se comprometer com alguém, e claro, depois de ouvir isso eu não tive coragem de contar o quanto gostava dela. Por mais que fosse apenas uma boa amizade eu considerava mais que suficiente, ela era engraçada na maior parte do tempo, apesar de um pouco mandona na maioria das vezes, tudo devia ser do seu jeito, ou fechava a cara e saia emburrada sem olhar para trás, no outro dia dizíamos estar com raiva um do outro, mas sempre estávamos lá, na estrada, no mesmo horário de sempre para caminhar, mesmo que de cara fechada durante todo o passeio.
A medida que descia as escadas via Luccas dançando e perturbando meu pai, que lia o jornal tentando esquecer o mesmo, e como sempre, quando chegava a sala ele vinha até mim e dava uma leve bagunçada em meu cabelo.

- Então, vamos pescar hoje?
- Você sabe que não posso, tenho que caminhar com Diana.
- Mas é aniversário do seu pai, ele queria pescar com nós dois.

Droga, eu havia me esquecido disso, a umas duas semanas o mais velho havia comentado que iria fazer 43 anos, não prestara muita atenção com Luccas me provocando sobre Diana, mas me lembrava vagamente da data que ele havia falado. Hoje também faziam exatos dois meses que acordei no trem, seria uma data importante por minha vida ter mudado para melhor, mesmo que sentisse bastante falta de meu outro pai, Edward era uma pessoa ótima, mas o conhecia a apenas dois meses, apesar de serem os melhores que me lembrava. Meus olhos vagaram pela sala um pouco mais silenciosa agora, por sorte ele parecia estar tão concentrado no jornal que nem percebera que havia esquecido, ou disfarçava muito bem. Corri até ele e abracei seu pescoço por trás da poltrona dando um sorriso largo, ele logo arqueou as sombrancelhas e deu uma risada baixa.

- Feliz aniversário.

Falei baixo mas com alegria na voz, ele pareceu gostar também já que sorriu e depois deu alguns tapinhas em meu braço voltando a ler o jornal. Eu sabia como resolver meu problema, só não sabia se Diana gostava de pescar, não podia passar o aniversário de meu pai longe dele, então fui a cozinha apenas por tempo suficiente para pegar uma maçã e escrever um bilhete ao qual deixei encima da pequena mesa que havia ali, segurado por outra maçã para que não voasse.

"Volto antes do almoço, vou encontrar vocês no lago, apenas tenho que convencer alguém a vir junto antes."

Eles saberiam quem era o alguém, só tinha mais uma pessoa além de Luccas e meu pai com quem eu conversava, seria até meio triste se meus únicos companheiros não fossem os melhores do mundo, por sorte eles eram. Na realidade eu já tinha certeza que Diana iria conosco, ela não recusaria esse pedido já que meu pai era seu médico, e eu um bom amigo, então deixei um bilhete também para ela, pregado a árvore que ela estava escorada enquanto lia quando nos conhecemos, seria a primeira vez que faltaria ao nosso passeio, mas a causa era boa e ela me perdoaria apesar de ficar um tempo com a cara fechada por ter de caminhar até a estrada para nada.
"Diana sinto muito não estar presente hoje, mas tenho um bom motivo, me encontre no lago das esmeraldas após o almoço."
Após deixar o bilhete segui para o centro com passos rápidos, logo chegaria a hora da tal pescaria e eu não podia me atrasar, ficariam preocupados comigo como sempre ficavam quando eu decidia caminhar sozinho. Esse também era um hábito que mantinha, gostava de sair sozinho pela mata alta, caminhar por entre as árvores e animais, era tranquilo e bom para lembrar de casa, não minha casa nesse tempo, mas em 2013 de onde eu havia vindo, em meu pai, será que estava preocupado com meu sumiço por dois meses? E minha mãe? Havia voltado de uma viagem para me procurar, as vezes até pensava que apenas estava sonhando, mas ninguém sonha por tanto tempo, de uma forma tão vívida, e se fosse um sonho com certeza já teria feito o irmão de Diana se tornar um pato, mas não um pato fofinho, um pato bem feio e vermelho.
Uma risada escapou de meus lábios após pensar em Mattew andando desengonçado como um pato e implorando para voltar a ser um garoto.
Logo estava no centro de Londres, próximo a praça e a igreja central onde havia uma relojoaria que abrira a mais ou menos um mês, lembrava de meu pai namorando um relógio de bolso quando passamos por ali em direção ao consultório, ele não o comprara, mas sabia que tinha gostado, por sorte tinha dinheiro, não muito mas tinha. A apenas alguns dias havia ganhado alguns trocados após ajudar Luccas a cortar a grama e cuidar da horta de uma senhora no sul de Londres, esperava que fosse suficiente para aquele relógio, ele não parecia ser tão caro apesar de bonito, as laterais cor de bronze davam um ar meio rústico, quer dizer, não sei se dava pra chamar de rústico já que estava a dois séculos atrás do meu tempo, tudo para mim era rústico ali.
O relógio era mais caro do que imaginava, mas consegui após pechinchar um pouco com o vendedor, ele era alguém legal, disse que meu pai ia adorar o presente. Claro, ele estava tentando vender seu produto, mas não podia negar, tinha expectativas de que meu pai adorasse aquilo mais que se desse um carro a meu pai de 2013.
Após a compra do relógio o guardei na pequena bolsa que sempre levava comigo, era feita de uma espécie de couro marrom com uma pequena trava prateada, me lembrava um pouco uma pochete, cheguei a pensar que talvez essa fosse uma antepassada um pouco menos tosca, convenhamos, pochetes te fazem parecer o tio que vai nos reencontros de turma com a blusa do time só para parecer mais novo. Talvez estivesse sendo um pouco duro com as pochetes, mas não tinha uma boa experiência com elas, no sétimo ano eu ganhei uma pochete de uma tia que mal conheço, para mostrar que havia ficado feliz ela me obrigou a levar aquilo para escola, e como era de se esperar eu virei a piadinha para todos, até mesmo minha diretora deu uma risada baixa quando passei ao seu lado, então assim como muitas outras coisas pochetes eram uma espécie de trauma que eu tinha. Felizmente aquilo ainda era apenas uma bolsa de couro, que eu podia carregar pendurada em meu ombro sem medo de alguém cair na gargalhada.
Acabei perdendo a hora conversando com o relojoeiro e só percebi que estava tarde quando conferi no próprio relógio que comprei, 14:37, deveria ter lhes encontrado no horário do almoço, as 12:00, mas pelo visto estava errado como na maioria das vezes. Apertei o passo seguindo pela velha Londres, algumas carroças tiveram de parar contra sua vontade quando passei a frente delas sem prestar atenção e sem ao menos me virar para pedir desculpas, já na estrada, diferente de outras vezes não reparei nos pássaros, ou nas folhas que caiam das árvores, ou até mesmo no belo céu azul com o sol forte da tarde, ou a brisa que me agraciava batendo contra meu rosto. Ok, eu posso ter parado alguns segundos para apreciar essa parte, mas nada mais que um minuto entre uma corrida até minha casa. Quando cheguei, pensei em entrar e comer algo antes de ir, mas já na porta fiquei surpreso ao olhar para trás e ver todos aqueles que acabei dando um bolo sentados na grama verde e conversando. Diana olhou para mim por um breve momento e depois fechou a cara, estava com raiva, conhecia bem aquela expressão em seu rosto, não podia negar que a deixava mais bonita de alguma forma, talvez eu gostasse do perigo, ou talvez fosse apenas suicida, de um jeito ou de outro as bochechas levemente vermelhas de raiva e os lábios unidos em um bico me deixariam com vontade de pedir desculpas até por coisa que não fiz. Ela lia um livro, o seu livro, este que constatei ser seu único, amenos que ela amasse muito ele, não tinha lógica ser o único que ela sempre lia, talvez o pai não permitisse outros livros, e aquele ficasse escondido em algum lugar, ou ela simplesmente gostava daquele monte de papel amassado e levemente manchado pela lama. Ela pareceu ler para eles, não ouvia direito daquela distância, mas constatei por leitura labial, e também pelo gesto de meu pai de coçar a nuca que era algo difícil de entender. Luccas parecia não prestar muita atenção, típico dele, olhando um pássaro que voava de galho em galho. Diana me soltou mais um olhar mortal, ela devia achar que eu estava demorando a ir até eles, queria ter tempo de colocar o relógio em uma caixa para a surpresa, mas a ruiva conseguia me convencer sem nem usar uma palavra ou gesto. No caminho até eles Luccas me olhou e deu um sorriso travesso, ele apontou discretamente para a jovem a seu lado e moveu os lábios, exigindo que eu interpretasse aquilo. "Garota legal em, estou te entendendo". Não entendi se ele queria me provocar ou envergonhar, mas minhas bochechas ficaram vermelhas de vergonha, como sempre, e a ruiva que me conhecia bem já havia entendido isso, dando uma risada baixa com a mão sobre a boca para conter-se. Bufei baixo ao me sentar, dando em Luccas um soco no braço, ele levou a mão ao lugar ainda rindo e passou algumas vezes, talvez fosse um pouco exagerado demais.

Por trás do RelógioOnde histórias criam vida. Descubra agora