Somente nos últimos anos eu parei para tentar entender e avaliar a anatomia dos eventos vivenciados por mim há cerca de 24 anos. No princípio, as lembranças daqueles acontecimentos eram constantes; não havia um dia sequer em que eu não pensasse sobre tudo o que eu vivi naquele ano. Agora, mais de duas décadas depois, minhas recordações ainda permanecem vivas, mas são como um leve frio nos pés que você sente quando desarruma o cobertor numa noite fria. Já não me incomodam como antes, mas ainda estão aqui.
Eu me chamo Daniel e naquela época, aos 16 anos, só queria sair vivo do último ano no Colégio Haroldo Dutra, umas das melhores escolas da pequena, distante, abandonada, pacata e super organizada Ventura, cidade onde nasci e vivi por quase toda a minha adolescência. Digo "super organizada" porque o lema da cidade era: "A vida pela lei se faz". Esta é a frase que você encontrará na placa de boas vindas ao entrar naquela velha, apática, simplória e simpática cidadezinha. Lá tudo parecia ser proibido, especialmente se você tem 16 anos. Se você ama viver uma rotina, Ventura com certeza é o seu lugar.
E por falar em rotina, bem-vindo à minha vida. Meu dia começava às 6h45, quando eu finalmente conseguia sair da cama. Vestia uma roupa qualquer, comia tudo o que tivesse na minha frente e seguia para a escola na minha bicicleta torcendo para chegar a tempo de pegar o início da primeira aula. O caminho até a escola não era longo. Me lembro ainda hoje de andar por aquelas ruas de casas tão parecidas com a minha que, não fosse pela bicicleta em movimento, eu poderia jurar que ainda não tinha saído de casa. Ventura era uma cidade de casas iguais, equidistantes umas das outras numa simetria fora do comum. Os doze bairros rodeavam o centro, onde ficavam as lojas, o banco, a biblioteca, a prefeitura e a corte municipal. Esses dois últimos precisam ser citados juntos porque representam a base da cidade, mas na ordem inversa de importância. Acontece que a política da cidade era influenciada, ou melhor, decidida pelo corpo jurídico; este formado por três juízes a quem os prefeitos eleitos e toda a cidade se submetiam. Ethan era o juiz mais velho e o principal dos três, quase idolatrado pelos venturanos; Henrique, o juiz mais novo, filho do atual prefeito Onésimo, era um entusiasta da lei; e Alef, o que nunca dizia algo que contrariasse os desejos da Vossa Alteza, o juiz Ethan. A fama da cidade e os costumes dos seus cidadãos eram um reflexo do trabalho destes três homens. Parecia não haver lugar seguro para os garotos da minha idade.
Lembro-me de chegar naquela manhã e sentir um enorme alívio ao ver o rosto ossudo da professora Antonieta Bloise - que até hoje eu não sei se esse era o seu nome verdadeiro ou se era uma espécie de nome artístico-. A Profª Bloise era uma mulher esguia, de meia idade, que nunca se casara. Dedicava sua vida ao trabalho. Soubemos de um ou outro namorado que ela teve- aluno sempre fica sabendo dessas coisas-, mas ela nunca quis se casar com ninguém, apesar da pressão que alguns pais mais conservadores faziam pelo fato de terem uma mulher solteira lecionando na escola de seus filhos. Naquele dia ela estava, como de costume, usando um de seus vestidinhos tipo tubinho, estampado, e sempre com sapato de salto. Gostava de imaginá-la como uma ex-cantora de bar ou uma ex-atriz de teatro. Eu era o seu aluno mais esforçado, daqueles que sentam nas primeiras fileiras e respondem tudo. Um chato. Mas isso somente nas aulas de humanidades, nas demais eu era bem mediano. Como eu era o aluno mais aplicado em história, eu tinha certos privilégios nas aulas da Profª Bloise. Por exemplo, ela sempre me permitia entrar na sua aula após o sinal tocar. Felizmente a primeira aula daquele dia era de história, pois cheguei atrasado novamente.
Ao entrar na sala, procurei o meu lugar ao lado de Levi. A turma estava discutindo qual projeto iríamos fazer para comemorar o centenário da cidade, que já se aproximava. A Profª Bloise encarregou a mim e ao Levi de pesquisarmos sobre a inimizade histórica existente entre a nossa cidade e o povoado cigano que vivia além dos nossos limites há algumas décadas
Se você é venturano, com certeza você já ouviu falar dos ciganos, pois a fama de "feiticeiros", "promíscuos", "ladrões" corre gerações. Inclusive, há décadas que, em toda festa de aniversário de Ventura os cidadãos comemoram o dia em que foi assinada a lei que proíbe qualquer contato nosso com eles e a construção do muro que os mantém distante do nosso povo. Os ciganos estavam sempre ligados aos mitos e lendas das mais macabras possíveis, que eram contadas para nós por nossos pais. Os venturanos eram proibidos de comprar ou vender para eles, de recebê-los em suas casas, nas escolas e nos hospitais.
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O OUTRO LADO DO MURO
General FictionDentro dos limites da metódica cidadezinha de Ventura, no advento das comemorações do seu centenário; Daniel, um garoto púbere no último ano da colegial, descobre seu parentesco com os ciganos que viviam num pequeno povoado além dos muros da cidade...