Nos dias seguintes resolvi tirar uma folga da pesquisa de história e de outros trabalhos também. A família do Levi passou alguns dias fora da cidade por conta do enterro de um parente e eu não queria passar aqueles dias trabalhando sozinho. Então, passava toda a tarde lendo na cama ou desenhando, buscando passar mais tempo com o meu colar. Foi então que, numa daquelas tardes, decidi ir até o muro para descansar ao ar livre, desenhar um pouco talvez. Deixei minha bicicleta caída na grama, sentei-me junto à muralha, à sombra de uma mangueira frondosa e comecei a rabiscar no meu caderno o campo ao redor. A tarde estava quentinha e clara, no chão haviam algumas florezinhas caídas da árvore, o vento suave balançava levemente as folhas nos galhos, algumas folhas num tom verde mais claro brilhavam no sol. O dia estava tão calmo, e o campo estava tão silencioso que eu caí no sono ali mesmo sobre a grama.
Meu sono ia bem até que, lá pelas tantas, eu ouvi umas vozes femininas vindas do outro lado da muralha e pareciam estar próximas. Fiquei sentado no chão, completamente imóvel como se elas pudessem me ver através das pedras.
Antes que as vozes se afastassem, subí apressado na árvore a fim de conhecê-las. Eram cinco a seis garotas, de saias longas e coloridas, todas de cabelos bem grandes, equilibrando em suas cabeças bacias metálicas cheias de roupas e baldes nos antebraços. De repente uma delas começou a cantar uma canção na sua língua e logo todas a acompanharam. Cantavam alto, uníssonas, despreocupadas.
Antes que eu pudesse pensar no que estava para fazer e desistisse daquela ideia insana, passei por entre os galhos, apoiei-me na muralha e, num impulso, pulei para o outro lado, caindo como uma manga podre no chão. A cantoria de repente parou. O som do meu corpo ossudo caindo no chão acompanhado do meu gemido de dor interrompeu bruscamente a canção. As meninas puseram suas bacias no chão e vieram apressadas na minha direção. Uma delas, uma garota linda de nariz alongado e cabelos tão escuros quanto a pedra de obsidiana do meu colar, disse-me algo em sua língua.
- Está tudo bem?- disse em seguida ao perceber que eu não havia entendido o que dissera antes.
- Acho que sim.- falei, quase gemendo.
Em seguida, apoiei-me no chão para tentar ficar de pé, mas senti uma dor forte no punho e uma fisgada no antebraço. Soltei um grito abafado e caí com a bunda no chão, segurando meu punho direito com a outra mão.
As outras garotas não se seguraram e deram uma risadinha ao ver aquela cena.
- Como você se chama, garoto?- disse enquanto se abaixava.
- Daniel.
- Me deixe ver isso.- falou, pegando meu braço antes que eu pudesse aceitar ou recusar.- Me chamo Álida. O que faz desse lado do muro?
- Eu... subi na árvore para tentar pegar uma pipa que ficou presa.- falei hesitante.- Quando fui descer, acho que pisei em falso e caí deste lado.
- Não está quebrado - disse, sem prestar atenção no que eu acabara de dizer-. Só machucou mesmo. Com sorte, em alguns dias já estará bem.
Aquela altura meu pulso começara a inchar.
Com a sua ajuda, consegui me colocar de pé e fui aos poucos tentando escalar as pedras do muro. A dor era terrível, mas eu precisava sair rápido daquela situação pelo bem da minha reputação - se é que eu tinha alguma-.
- Adeus! Cuidado quando for pegar pipas.
As demais garotas riam e falavam algo em sua língua.
- Álida? - perguntei como se tivesse me esquecido de seu nome. Ela acenou que sim com a cabeça. - Obrigado!-.
Demorei bastante tempo para chegar em casa. Quando dobrei a esquina da minha casa a noite já havia chegado e minha mãe também. Em casa naquela noite, não conseguia esquecer o que havia acontecido. Meu pulso parou de doer depois que a mamãe me deu um remédio. Contei a ela que levara uma queda da bicicleta e acabei caindo de mau jeito.
Sentado na cama mais tarde, sem camisa, com o colar pendendo no meu peito, tentava ler um livro, mas era simplesmente impossível me concentrar depois do que eu vivi naquela tarde. Ainda conseguia lembrar da música que as meninas cantavam. Lembrava-me também da Álida abaixando-se para me ajudar. Lembrava-me de suas roupas, seu cabelo escuro, sua cintura, seus seios.
Acordei pela manhã sentindo o meu punho doer novamente. Durante a noite, acabei dormindo sobre o meu braço direito, enquanto me revirava procurando uma posição confortável para dormir. Era manhã de sábado, ou seja, nada de aula ou da minha mãe entrando no quarto para me acordar cedo. Ainda deitado na cama, passei um bom tempo sentindo meu pulso latejar, lembrando-me da tarde anterior, quando conheci pela primeira vez os ciganos, aliás, as ciganas. Álida. O nome era tão lindo quanto seu rosto. Sua pele cor de canela exalava um cheiro de muitas flores e água fresca, mesmo no calor do sol. Lembrei que em algum momento da noite eu havia sonhado com ela. Nos encontrávamos no campo sob a sombra da mangueira junto ao muro. O dia estava claro e quente, a grama esfriava o calor dos nossos corpos. Deitados, tocava-lhe os cabelos, sentindo o perfume que deles saía. Com as mãos percorria sua pele arranhando-a, mordendo-a, fazendo-a arrepiar-se no menor dos toques. Ficamos deitados nos amando até que me senti leve. Só pela manhã notei a minha cueca ainda manchada da nossa noite. Apesar da dor no punho, não me importava de ficar deitado ali mais um pouco, com o colar tocando o meu peito quente, com os pensamentos indo e vindo de um lado ao outro do muro.
Mesmo aos dezessete anos, eu ainda não havia estado com nenhuma garota. Muitos garotos na escola gabavam-se de não serem mais virgens. Ariel, por exemplo, listava para qualquer um que quisesse ouvir (ou não) todas as garotas da escola com quem ele havia dormido. Sempre que íamos para o vestiário após as aulas de educação física, ele reunia todos os garotos e contava-lhes como tinha sido a noite anterior. Mesmo não gostando dele, Levi e eu sempre o ouvíamos. Ouvíamos também os outros garotos e suas experiências. Geralmente nós, os virgens, ficávamos calados enquanto os rapazes contavam suas histórias, gesticulavam, riam alto. É claro que alguns garotos virgens arriscavam contar umas histórias de suas experiências sexuais, mas nenhum de nós acreditava neles, mesmo assim os deixávamos falar.
Passei mais algum tempo deitado, até que tomei coragem para me levantar, tomar um banho frio e comer alguma coisa. No início da tarde, fui na praça da cidade na esperança de encontrar alguém da escola. Não pude ir de bicicleta nem nada por causa do meu punho, então fui andando mesmo.
O centro de Ventura começava a ser enfeitado para a grande festa do centenário. Haviam flâmulas azuis e brancas penduradas nas fachadas dos prédios públicos, faixas de mesma cor enfeitavam as lojas, a praça ganhava um retoque na pintura. Em frente ao tribunal, uma equipe montava o palanque para as apresentações musicais e para o discurso do prefeito, dos juízes e do padre da paróquia, uma tradição nestas festas.
Passei algum tempo na praça, mas não encontrei ninguém com quem eu quisesse conversar. Até topei com alguns garotos da escola, mas ou estavam ocupados comprando roupas para comparecerem à festa, ou não eram interessantes mesmo. Então, decidi ir até o muro e ficar deitado na grama relaxando. Fui caminhando sem muita pressa até lá. Ao chegar no campo, tirei os sapatos para sentir a grama nos meus pés. Fazia um pouco de calor, então resolvi também tirar a camisa e só então eu percebi que esquecera de guardar o colar na gaveta. Meu coração quase parou quando o notei no meu pescoço, mas eu estava sozinho ali, então não precisava me preocupar.
Deitei-me à sombra da árvore e fiquei observando suas folhas balançarem com o vento, suas pequeninas flores caírem no chão e em mim. Deitado na grama, com o colar sobre o peito, descalço e sem camisa; aquela passou a ser a primeira coisa que me vem à mente quando ouço a palavra liberdade.
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O OUTRO LADO DO MURO
Genel KurguDentro dos limites da metódica cidadezinha de Ventura, no advento das comemorações do seu centenário; Daniel, um garoto púbere no último ano da colegial, descobre seu parentesco com os ciganos que viviam num pequeno povoado além dos muros da cidade...