LEONI - Capítulo VI

11 1 0
                                    

Resolvi tentar subir na árvore embora ainda sentisse o punho doer. Tentei algumas vezes até conseguir, apoiando-me entre o muro e o tronco. Apesar da dor, escalei o tronco acima até as galhas altas. De lá, fui me equilibrando até o muro e, num esforço maior, consegui me sentar nele. Depois tomei um impulso e pulei para o outro lado.

Creio que desci no mesmo lugar onde havia caído da última vez. Levantei-me e segui apressado na direção de onde as garotas estavam indo na última tarde. Era um campo aberto, repleto de arbustos, com uma trilha de barro por onde segui. Após andar alguns minutos trilha adentro, ouvi umas vozes próximas de onde eu estava. Aproximei-me aos poucos, escondido atrás dos arbustos. Era um grupo de garotos e garotas, cerca de uns dez deles, descansando à beira de um riacho. Haviam dois na água tentando pescar com uma redinha, outros conversavam nas pedras, e ainda outros descansavam na grama.

A Álida estava sentada numa das pedras conversando com os amigos. Entrara na água com roupa e tudo, aliás, todas as garotas estavam assim. Ainda escorria água dos seus cabelos. Fiquei algum tempo parado ali sem saber se ia embora ou se ficava. De repente, um garoto apontou na minha direção. Meu coração quase parou tamanho o susto que tive ao ser descoberto. Onde eu estava com a cabeça? Temi que eles me batessem ou sei lá o quê poderiam fazer comigo.

- Ei, quem é você?- Esbravejou o rapaz. Era um garoto forte e não muito alto. - Vamos, saia já daí!

Eu estava apavorado. Todos os garotos olhavam na minha direção me mandando sair de trás do arbusto ao mesmo tempo que se preparavam caso eu resolvesse correr, o que de fato passou pela minha mente, mas percebi que não conseguiria subir rápido o muro com o punho machucado como estava. De repente senti minhas pernas tremerem e meu estômago esfriar. Ouvi outro garoto dizer alguma coisa, mas só conseguia pensar em como a minha respiração estava pesada. Minha vista começou a escurecer e meu corpo parecia ser incapaz de me obedecer. Apaguei.

Acordei sentindo um cheiro familiar que me reanimava aos poucos. Abri os olhos e vi a Álida segurar um frasco de vidro do seu perfume próximo do meu nariz. Ao passo que fui recobrando a consciência, fui percebendo o que estava ao meu redor. Além da Álida, que encarava-me com a testa franzida de preocupação, havia também uma senhora de rosto bastante enrugado e muitos cabelos brancos junto ao garoto que falara comigo no riacho. Olhei ao redor totalmente confuso, ignorando as perguntas sobre eu estar bem. Era uma casa pequena de madeira, abafada e pouco iluminada. Havia na parede o retrato de uma santa negra para quem olhei com mais atenção.

- Meu filho, você está se sentindo bem?- perguntou a senhora.

- Sim... acho que sim - respondi, pondo a mão na cabeça. Só agora sentira o estrago da queda.

- O que veio fazer desse lado? Como você se chama? -Disse ela com firmeza.

- Ele se chama Daniel, vó. É do outro lado do muro - antecipou Álida. - As garotas e eu o encontramos ontem quando fomos lavar as roupas no riacho. Ele tentou recuperar uma pipa que ficou presa na mangueira - falava me lançando um olhar de cumplicidade - acabou caindo do muro.

- Pelo visto resolveu cair do muro outra vez! - resmungou o garoto.

- Não sei o que você veio fazer aqui, menino, mas é melhor você voltar logo! - Reclamou a senhora - Não quero problemas pra nós, você me entendeu?

- Sim - Respondi enquanto me sentava na beira da cama esperando o chão parar de girar.

De repente a senhora se aproximou de mim com um semblante totalmente diferente do que estava antes, olhando para o colar pendendo no meu peito e me lembrando outra vez de que eu estava com ele. - Onde conseguiu este colar? -.

Inclinei-me levemente para trás surpreso com a pergunta e com a aproximação repentina dela. Segurei a pedra do colar com uma das mãos com medo do que pudesse acontecer.

- F-foi do meu pai.

- Como assim? Onde ele conseguiu este colar? - perguntou com a voz levemente exaltada.

- O meu pai... o meu pai era cigano. Ele deu esse colar a minha mãe.

Enquanto falava, percebi que a Álida e o garoto se entreolharam franzindo a testa. Álida pôs a mão no ombro da senhora, que me lançava um olhar surpreso e triste.

- Vovó, ele está falando do tio Leoni?- perguntou o garoto.

- Acredito que sim, Ruan.- Respondeu, fitando-me quase paralisada.

- Vocês conhecem o meu pai?

- Me diga, meu filho, quando sua mãe ganhou isto? -Perguntou com voz trêmula.

- Há uns... 17 anos eu acho.- respondi.- Vocês conhecem meu pai?

Ao ouvir isto, a senhora caiu de joelhos no chão cobrindo o rosto com as mãos. O Ruan se adiantou para pegar uma cadeira e ajudá-la a sentar-se. Eu não sabia o que fazer, muito menos o que pensar. Ela chorava alto, completamente transtornada sentada próximo da cama onde eu estava sem entender o porquê daquele colar a fazer chorar daquela forma. E foi então que eu percebi. Aquele rosto era sim familiar. Estava diferente por causa da idade, mas era ela com certeza, a cigana da foto. Era a minha avó.

Eu não suportei vê-la chorar daquela maneira na minha frente, então desabei em choro também olhando suas mãos enrugadas esconderem o rosto quase todo e abafarem o choro lamentoso e desesperado. "Você se parece tanto com ele". A Álida e o Ruan inutilmente a tentaram consolar, mas foram obrigados a sair de lá a pedido dela. Permanecemos assim por longo tempo até conseguirmos nos acalmar.

- Este colar... está na nossa família há gerações. Pensávamos que ele havia sido roubado do seu pai.

- Vó... o papai está aqui? Você pode me levar até ele?

- Meu filho... - Disse, tocando a minha mão. Meu coração congelou ao sentir a hesitação em sua voz e mais ainda depois do que me disse - O seu pai morreu há quinze anos.

Tentei dizer alguma coisa, mas a minha voz e o meu ar praticamente sumiram. - Vó... isso... isso não...

- Sim, meu filho - Falou, baixando a cabeça. Algumas lágrimas pingavam do seu rosto no chão.- O seu pai vendia as minhas peças de artesanato nas cidades aqui da região. Muitas vezes teve até que ir pra outras cidades mais distantes daqui. Numa dessas viagens ele foi assaltado na estrada, tomaram todo o dinheiro da venda e lhe bateram tanto que ele ficou irreconhecível. Tentamos levá-lo para ser atendido em algum hospital, mas quem é que vai atender um cigano? Deixaram o meu filho morrer nos meus braços do lado de fora do hospital.

- Meu Deus! - Lamentei.


Ficamos ali mais um tempo chorando sem conseguir dizer mais nada. O papai morreu sem saber que eu existia, pensava. Eu jamais o conhecerei. Até pouco tempo eu o tinha de volta, mas que agora ele voltara a sumir da minha vida.

Vó Dayla, como passei a chamá-la desde então, serviu-me uma fatia de bolo e enfaixou minha mão machucada com uma mistura de ervas refrescantes.

Algum tempo depois a Álida voltou - Vovó, já está na hora do Daniel voltar-.

- Você tem razão, filha. Daniel, é melhor você ir agora. Se alguém de lá souber que você esteve aqui nós teremos problemas.

- Vou levá-lo até o muro, Vó, e mantê-lo longe de encrencas.

O dia já estava escurecendo e eu nem me dei conta de que passara tão rápido. O Ruan e a Álida me acompanharam até o muro. Fomos quase o caminho todo calados. Quando chegamos no muro, a Álida despediu-se de mim com um abraço. Com a ajuda do Ruan, subi no muro e voltei para Ventura.

Já havia anoitecido quando passei pelo campo, totalmente escuro. Ouvia-se só o coaxar dos sapos, enquanto os vaga-lumes voavam de um lado para o outro. 


Hey, espero que tenha gostado deste novo capítulo! Não esquece de deixar seu comentário e clicar na estrelinha da avaliação. Ah, vamos conversar pelo Instagram? joaosadi.escritor

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Jun 09, 2020 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

O OUTRO LADO DO MURO Onde histórias criam vida. Descubra agora