UM SOCO NO ESTÔMAGO - Capítulo II

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À medida em que eu pedalava apressado e passava pelas fileiras de casas iguais a minha, fui me dando conta de que elas me causavam a sensação de estar parado não apenas no espaço, mas também no tempo. Aos poucos, cada canto daquela pequenina cidade transportava-me para a minha infância de uma maneira tão real que era como se eu pudesse interagir com o meu passado e revivê-lo.

Lembrava-me das brincadeiras com os garotos da minha rua e do jardim florido na praça central. Lembrava-me também das manhãs de domingo na igreja e dos banhos de mangueira nas tardes quentes. Lembrava-me das manhãs chuvosas de inverno em que eu ficava enfiado num cobertor assistindo TV a manhã inteira. Mesmo hoje, após tantos anos, ainda sinto falta daquela época, de como a infância foi boa naquela vizinhança. Às vezes ainda me pego cantarolando as músicas que tocavam nas noites quentes de verão; umas baladinhas que nos faziam cantar juntos e até arriscar uns passos. Eu jamais me permiti esquecer essas coisas.

Enquanto passava pelas ruas de Ventura, já iluminadas pelas luzes amarelas dos postes, me lembrei de como a minha mãe e eu tínhamos um mundo só nosso. Sinto falta de quando ela me acordava todas as manhãs com pena de me tirar da cama - quando eu era um garotinho- e vasculhava as gavetas escolhendo uma roupa para mim, preparava os melhores ovos mexidos que eu já provei na vida e depois saíamos apressados. Ela me deixava na escola antes de ir para o correio da cidade, onde trabalhava separando as correspondências, carimbando os envelopes, conferindo as informações de destinatário e remetente. O emprego não lhe pagava bem, mas era suficiente para suprir as nossas necessidades; não vivíamos mal.

Todas as tardes após a aula a professora Marlene, que também era sua amiga, me deixava no correio, onde eu passaria a tarde vendo-a trabalhar. Os funcionários conversavam exageradamente alto, o ar era impregnado com o cheiro de cigarro e café; no meio de tudo isso ela era como uma miragem. Mamãe estava sempre com os seus cabelos loiros presos desajeitadamente, deixando alguns fios caírem sobre sua testa delicada; e suas pernas curtas quase balançando na cadeira faziam-na parecer um mineral precioso no meio de um monte de rochas cinzas e sem valor algum. Ela era de uma vivacidade e força tão grandes que me deixava orgulhoso de andar ao seu lado, de ser chamado seu filho.

O trabalho no correio de Ventura era quase sempre monótono, exceto no período natalino, quando o envio de cartas e cartões postais aumentava consideravelmente. Durante quase toda a tarde, enquanto os adultos trabalhavam, eu ficava sentado na escada que levava para o primeiro andar do prédio rabiscando alguns desenhos no meu caderno. Desde aquela época e ainda hoje este é o meu hobby favorito. Quando encerrava o expediente, voltávamos para casa a pé.

Naquela época tínhamos o costume de parar na padaria toda semana para comprar uns bolinhos cobertos de chocolate, que vínhamos comendo ainda pelo caminho. Eu sempre me sujava todo. Os bolinhos eram uma espécie de pagamento pelo meu bom comportamento -não que eu precisasse disso para me comportar bem, mas a gente joga com o que tem-.

No caminho de volta para casa nós conversávamos sobre o meu dia na escola; também brincávamos de andar sem pisar nas linhas desenhadas nas calçadas, às vezes invertíamos e íamos saltando de linha em linha.

À noite, após o jantar, a mamãe ficava sentada na mesa da cozinha ouvindo rádio e eu quase sempre na sala, deitado no sofá vendo as séries de humor que passavam na TV. Era uma época maravilhosa.

Mas à medida em que eu fui crescendo a nossa relação foi mudando e fomos nos afastando. Quando eu tinha cerca de dez anos de idade a minha mãe, que naqueles tempos namorava um rapaz da igreja, descobriu que estava grávida de uma menina. A mamãe e o Tiago, meu ex-padrasto, já haviam escolhido o nome da criança, que se chamaria Clara, mas a gravidez não vingou e minha mãe perdeu o bebê do quinto para o sexto mês de gestação. Ainda me lembro de como ela ficou arrasada. Depois disso o seu relacionamento com o Tiago durou pouco tempo. Aos poucos ela começou a mudar e aquela flor linda e viva que eu vi durante a maior parte da minha infância parecia que estava murchando e secando, e aquele brilho nos olhos pela vida já não existia mais. Em casa não se falava da Clara, embora ela parecesse estar presente na nossa família, sentada à mesa conosco ou no sofá. Eu gostaria de nunca ter crescido e no fundo eu penso que a mamãe também desejava isso. Talvez ela se sentisse perdendo as suas duas crianças.

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