O MURO DE PEDRA - Capítulo III

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Passei algum tempo deitado olhando a cortina que balançava suave deixando escapar um pouco da luz do dia. Pela primeira vez depois de muito tempo, tanto que nem lembro, a minha mãe não invadira o meu quarto, escancarando a cortina e me obrigando a levantar e me arrumar a tempo de não chegar atrasado para a aula. Desta vez, no entanto, as cortinas permaneciam fechadas, eu permanecia na cama e a casa estava totalmente silenciosa. Minha cabeça doía, eu não fazia ideia que horas eram e depois de algum tempo o meu estômago roncava tão alto que eu quase já não me sentia só em casa.

Fui até a cozinha improvisar algo para comer. Peguei um saco de torradas, um copo grande de achocolatado e devorei como um cão faminto. Sozinho em casa, começava a ser tomado por um sentimento de vazio bastante recorrente a partir de então. Eu raramente ficava só em casa. Todos os dias eu passava as manhãs na escola e a tarde com o Levi. Corríamos de bicicleta pelo bairro, pela praça no centro, pelos campos ao redor da cidade. Quando não era isso, o Levi me arrastava vez em quando para o cinema, uma vez que eu era a única pessoa que aceitava passar mais de uma hora numa sala de projeção assistindo filmes de ficção científica. Confesso que até gostava de alguns, mas tentava não demonstrar para não incentivá-lo.

Para não passar a tarde em casa, e antes mesmo que o Levi viesse me procurar, me troquei e fui dar uma volta de bicicleta pela cidade. Minha mãe estaria em casa no final da tarde e eu não queria encontrá-la tão cedo. Não queria que ela tentasse continuar a conversa da noite anterior. Tinha medo de descobrir mais alguma coisa sobre mim que esteve debaixo dos panos e debaixo do meu nariz todo esse tempo. A verdade tem um gosto amargo quando guardada por tantos anos. O meu maior medo, tenho que confessar, era ter que dizer alguma coisa sobre toda esta história. A verdade é que, naquele momento, eu não tinha nada a dizer que não pudesse magoá-la.

Durante a tarde, enquanto pedalava pelas ruas a esmo, tentando me distrair e pensar em qualquer outra coisa, só me passava pela cabeça o fato de que passei anos vivendo somente parte do que eu sou. E o pior é saber que ela passou dezessete anos para me contar isso. Não tivesse eu encontrado aquela foto na biblioteca e ainda estaria vivendo normalmente, tendo parte de quem eu sou, de quem eu poderia ser, omitida. Antes eu pertencia a Ventura, agora sou um intruso num corpo, esperando um anticorpo que me expulse, que me expurgue.

Além de tudo isso, ainda descubro sobre o meu pai, sobre a minha avó, sobre os ciganos do outro lado do muro. Em toda a minha vida, falamos do papai não mais que algumas vezes. Tudo o que eu sabia sobre ele era que se chamava Leoni e que um dia saiu e nunca mais voltou. Não haviam fotos, cartas, notícias. Era como um fantasma. Várias vezes tentei conversar com ela, saber mais sobre ele, mas me sentia machucando-a com lembranças. Então, passei a evitar o assunto e nunca mais falamos nele.

Depois de algum tempo pedalando decidi ir até o muro, que ficava um tanto distante do centro. Em quase todos os pontos altos da cidade era possível vê-lo. Ventura era rodeada por um muro que media uns quatro metros de altura, com um portão ao sul e outro ao norte, construído com pedras escuras que lhe conferiam uma aparência rústica. Mas não fora pela aparência que eu fui atraído a ele naquela tarde. Eu sentia que precisava estar próximo dele, mas não como das outras vezes; agora eu queria conhecer bem o que me separava fisicamente do povo ao qual também pertencia.

Ainda não me acostumara à ideia de ser meio cigano. Para ser sincero, isso me apavorava. Cresci ouvindo as piadas, as estórias, o escárnio contra aquele povo e agora eu era um deles. Eu me perguntava até quando estaria daquele lado do muro?

Temia ser descoberto. Por vezes imaginava o que fariam comigo se isso acontecesse. Um garoto meio cigano andando pelas ruas de Ventura, estudando na sua escola, falando com o seu povo. Eu jamais seria bem-vindo novamente.

Passei mais algum tempo ali sentado na grama encostado à muralha observando o sol se pôr, admirando reverentemente seus raios ruivos pintarem o céu. Ele brilhava imponente por sobre a muralha. Ao menos ele era capaz de ultrapassá-la, de vencê-la. Ao menos ele poderia estar de ambos os lados, um direito do qual eu não dispunha.

A noite não demorou para chegar, me obrigando a voltar para casa. Fui pedalando pelos caminhos de terra, depois pelo centro da cidade, ainda bastante agitado, até dobrar a esquina da minha rua. O percurso de volta para casa não foi demorado, embora eu não tivesse a menor pressa para chegar ou a mínima vontade de estar lá. Voltei somente por causa da fome, que me atacava outra vez. Ao chegar em casa, deixei a bicicleta nos fundos e entrei pela porta da cozinha, encontrando a minha mãe pondo a mesa para o jantar.

- Onde você estava, Daniel?

-Estava com o Levi, mãe, andando de bicicleta.

-Que bom que você falou nele, porque ele veio aqui não tem muito tempo, perguntando por você. Tem certeza de que estava com ele? - Falou em tom sério.

-Eu só saí para dar uma volta, mãe. Qual é o problema?

-O problema é você chegar a essa hora, não deixar nenhum aviso e ainda mentir para mim.

-Bem-vinda a nossa família. Mentir é o nosso forte! - respondi, em tom sarcástico. Minha voz sempre ficava trêmula ao falar com ela naquele tom. Minha mãe e eu tínhamos uma boa relação quando eu era mais novo, mas à medida que eu fui crescendo fomos nos afastando. Não brigávamos, no entanto todo o resto soava superficial, ensaiado. Naquela época eu achava que ela estava no automático, que quando me perguntava sobre a escola, sobre meninas, ou quando tentava puxar algum assunto sobre a minha vida, era como se estivesse perguntando apenas porque achava que deveria saber, não porque se importasse ou algo do tipo. Mas mesmo distantes, nossas discussões eram raras. Normalmente eu não a enfrentava. Se eu realmente quisesse fazer algo, fazia escondido. Era melhor do que ficar discutindo.

-Não quero que minta mais para mim! Está me ouvindo?

Dei de ombros e fui deixando a cozinha.

-Não pense que vou jogar esse joguinho, ouviu?. Esteja aqui para o jantar em dez minutos! - esbravejou, pondo o prato com força sobre a mesa.- Eu sou sua mãe, você mora na minha casa. Se pretende sair novamente vai ter que me dar satisfação.


Não vou dizer que o jantar foi agradável. Sentamos à mesa, mas não trocamos uma palavra, sequer a olhei. O tilintar dos garfos e facas nos pratos, o barulho dos copos com suco sobre a mesa davam conta de todo o ruído do ambiente, tornando-o ainda mais desconfortável. A comida até estava saborosa, mas eu não queria estar ali, logo, fiz o que pude para não demorar à mesa. Assim que terminei, levantei-me, lavei minha louça e subi para o meu quarto, ainda sem dizer uma palavra.

A noite não foi muito divertida. Tentei me distrair lendo um romance policial, depois folheei alguns outros livros da minha estante, até que peguei no sono ali mesmo com os livros sobre a cama.

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