TUDO É ÓBVIO.

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LEONARDO

A biblioteca  da escola tem esse cheiro característico, de poeira misturado com o odor  de coisas velhas. Ela também tem um tom marrom escuro, com pequenos feixes de luz que passam de uma janela para outra, iluminando os cristais de poeira que aparecem por causa da luz solar.

As prateleiras são altas e parecem bater no teto, os livros, estão organizados corretamente em seções, mas é possível encontrar alguns em lugares errados. O chão é de madeira,em  contraste com toda a escola, com o piso de cerâmica. E também possui na parede arestas de madeira, da mesma que está no chão.

Tudo para aparentar um ambiente  sofisticado, para abrigar os livros clássicos e bem antigos que moram aqui há bastante tempo. Com tudo moderno na escola, aqui parece um lugar tirado do filme A sociedade dos poetas mortos.Mas o que me  intriga  mesmo é os feixes luminosos quando se destacam nesse lugar escuro. É a minha parte preferida, ver o contraste entre os dois, o escuro e o claro. Pensou Leonardo.

Gosto de observar as pessoas quando ficam perto da janela lendo um livro, a luz batente em seu rosto, as deixam bem bonitas. Quase me apaixonei por uma garota por causa disso uma vez. Leo suspira. Seria amor de verdade se ela tivesse lendo  on the road. Meu livro preferido.

- Hoje você demorou mais do que o normal para vir aqui, até pensei que tinha faltado o primeiro dia de aula.

Disse o senhor René, com as mãos na cintura, sentado atrás do balcão que fica logo na entrada da biblioteca, ao chegar. Dou um sorriso ao ouvir sua reprimida. Eu  adoro esse professor.

Venho aqui as vezes, só para conversar com ele. Ele tem uma personalidade bem diferente das demais, um pouco eloquente. Foi professor de literatura e arte por toda a vida, e é apaixonado por tudo o que é artístico. Perto de se aposentar, ele agora trabalha aqui na biblioteca, com o propósito de se livrar dos alunos. Claro. E aqui estou para encher seu saco.

Mas o que eu me faz gostar mesmo dele, é o seu sarcasmo, e a forma como ele conversa com as pessoas, como se seus olhos fossem capaz de enxergar o seu segredo mais profundo.

- Tem razão. Demorei  porque me perdi um pouco em devaneios. Falo e espero sua reação.

- A única coisa que faz um homem ter devaneios é uma linda mulher. Ele responde como alguém experiente ao degustar um vinho.

- você está certo e está errado. Ver ela me fez pensar sobre a minha infância.
E não imagina-la sem roupa. Brinco.

- Então ela não era linda ? Ele pergunta. 

É claro que sim.

- Ela sempre foi, mas não foi por isso que pensei sobre o meu passado.

  - Então ela pertence a ele, hum? Estou ficando animado, é a primeira vez que conversamos sobre garotas. Ele diz, mas o seu tom monótono não denota animação.

- Isso não é verdade. E sobre aquela garota que me apaixonei uma vez?  aquela que estava lendo um livro perto da janela.

- Ela não tinha o gosto literário correto, já decidimos isso. Essa nova garota tem?  Se tiver, ela será a certa.

- Eu não sei, pelo que eu me lembro, ela gosta de contos de fadas e duendes.

- uma garota romântica tende a gostar de Shakespeare. Tem um bom gosto.
Ele afirma, como se fosse um tipo de perito no assunto.

- você e suas pré suposições. E se ela gostar de livros de terror?

- Ainda seria a correta. Você que gosta de ler mangas, não deve julgar os hábitos literários dos outros. Ele ironiza.

- E não julgo. Desde que não seja poemas. Odeio poemas. Falo.

Eu realmente odeio poemas.

- Uma vez namorei uma garota que gostava de poemas, ela escrevia ótimas cartas, mas depois fugiu com outro homem. Ainda leio suas cartas de vez em quando. São muito bonitas.

O professor responde, imerso no seu próprio mundo.

- Talvez você gostasse das cartas, e não dela, afinal.  Afirmo.

- Não é das cartas, e sim gostar da sensação de amar que nos faz querer os outros.  Poético.

Ele fala e depois repete de novo mentalmente e escreve em um caderno surrado, que sempre fica encima do balcão. O professor escreve tudo o que ele acha inspirador. Ele diz que quando chega em casa gosta de ler essas inspirações enquanto bebe vinho e escuta música clássica. Imaginar ele fazendo isso o faz parecer um cara bem solitário.

Solitário e maluco.

- então nunca amarei, pois não gosto dessa sensação. Respondo.

Ele anota as minhas palavras. Acho graça.

E volta sua atenção para mim, com um rosto sério.

- Olha escreva o que eu digo.

Ensaio um movimento de que vou escrever.

  - Não  existe uma pessoa no mundo que não goste da sensação de amar.

- Você deveria escrever essa. Digo.
Ele nega com a cabeça.

- Isso é óbvio demais. Ele diz confiante.

Óbvio demais. Repito na minha cabeça. Existe muitas coisas que são óbvias demais. As pessoas são frágeis e fáceis de serem quebradas, isso é óbvio, tudo existe um início e fim, a felicidade não é algo permanente. Isso também é muito óbvio. Talvez eu até seja. O professor estar certo não é nenhuma novidade. Não pode ser contestado aquilo que é óbvio. Por isso, eu não tenho direito de resposta.
Afinal, tudo é óbvio.

E eu estou levando à vida a sério demais.

DISTANTE SINTONIAOnde histórias criam vida. Descubra agora