O princípio

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Dia 16 de Março de 2020. São 09 horas da manhã, na televisão está passando um aviso "urgente", com uma música sensacionalista de terror televisivo. 

De imediato o interlocutor afirma: "O Corona vírus, COVID-19, chegou ao Brasil. As autoridades estaduais declaram quarentena...". Ao meu lado esquerdo vejo as pessoas de meu trabalho, algumas levando a mão a boca, em sinal de pavor, outras, sem acreditar na cena, se entreolham como se fosse o fim da espécime humana. Entre os tipos que se encontram na sala, em todos, há algo em comum: o semblante de terror naqueles olhos arregalados.

- É o fim! - Afirma uma senhora que está sentada na cadeira a minha frente - O mundo vai acabar! - Insiste.

Eu, também assustado, tento prestar atenção nos dizeres do apresentador do jornal.

A televisão não para. Logo o interlocutor afirma: "A OMS aconselha, quem puder, fique em casa. (...) Os sintomas são: 'falta de ar, cansaço, coriza, dificuldade de se locomover (...)'."

Estes sintomas são bem conhecidos, não muito diferente de uma gripe a qual todos já não tenhamos vivido. Porém, a imagem na TV mostra que a coisa é séria. Então, se a OMS está dizendo que é sério, que assim seja.

Após o fim do jornal, o programa de Ana Maria Braga volta, trazendo consigo aqueles pratos deliciosos que ninguém se atreve a fazer, por medo ou por pura preguiça. Seguindo uns 20 minutos de programação, todos nós voltamos a fazer os nossos trabalhos quando, rompendo o ritmo frenético de produção Judite, como ela mesma se intitula, uma "jovem senhora", em voz baixa, levemente dramática: 

-  Gente, a coisa é séria. Vou comprar álcool em gel hoje mesmo. - Todos concordam. 

Após Judite se manifestar, em seguida, o programa de Ana Maria anuncia que os preços do álcool em gel nas farmácias subiram de R$ 4,50 para R$ 11,98. Uma inflação jamais vista, desde os tempos do governo de José Sarney. 

No fim do expediente, saio do prédio onde trabalho, indo em direção à minha casa. Ao pisar na calçada vejo que tudo está normal, carros atravessando de um lado para outro, descumprindo as normas de trânsito dos mais variados tipos, ou seja, normal. Exceto pela feição de susto que todos estão estampados nos rostos, expressões do mais variados tipos de pavor em contrair uma doença que acaba de chegar ao Brasil.

O medo, somado a histeria, faz com que aqueles que caminham com certa dificuldade passem a, praticamente, correr pelas calçadas das ruas, ansiando chegar no ponto final o mais rápido possível. Temendo o contágio, faço o mesmo para chegar no meu carro que, além de ser velho, é uma bolha de proteção bem segura. A ferrugem da lataria afasta qualquer engraçadinho que tente se meter a besta, afinal, um tétano não é brincadeira, talvez pior que o tal de Corona Vírus.

Na rua se vê que a cada passo, cada compartimento daquele inferno, bem diferente das zonas dantescas, vou reconhecendo os pródigos infelizes que ali amargam a ignorância ao se cumprimentarem com abraços, apertos de mão e beijos no rosto. 

Chego em casa, levemente esbaforido. Minha esposa, também assustada, me recebe sem aquele beijo afável ou sequer um aperto de mão, onde, de imediato, diz:

- Vá lavar as mãos e tire essa roupa! 

Como um bom marido, ortodoxo em meu estilo de vida, macho alfa da casa, respondo. Afinal, a última palavra é a minha: 

- Tá bom, amor. 

A televisão também está ligada, entoando o assunto da forma mais veemente possível. Tentando informar, através da histeria, que os cidadãos se protejam como podem, ou melhor: "fiquem em casa...", como o próprio jornal diz.

A noite, já de banho tomado, após um delicioso jantar, descansado, recebo a notícia de meu chefe, via whatsapp, que diz: "Não venha amanhã. Estamos todos de quarentena!". Confesso que me senti aliviado, quase levei minhas mãos aos céus a fim de agradecer pelo vírus estar circulando.

O meu entusiasmo seria longo caso não fosse o pronunciamento na TV. Antes do jornal iniciar o presidente da República se manifesta. Entre um vômito de palavras e outro, ele diz: "Isto é uma gripezinha, um resfriadinho...". Minha esposa, vermelha, quase deixando a ira se manifestar, olha para mim e faz aquele sinal de: "é sério isso?!", em sinal também respondo: "lamentável... lamentável...". Pouco tempo depois, aquele mesmo jornal anuncia que todos os assessores do presidente estão infectados, inclusive, alguns deles, na UTI.

Em meio a esta pandemia, aprendi algo sólido, visível aos olhos de quem quer ver. O bem da verdade é que assim acontece, que toda alma desordenada seja o castigo de si mesma. 

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