São 06 horas da manhã. O despertador toca aquele som infernal de causar arrepios na espinha de qualquer um: "Pic. Pic. Pic.".
Rapidamente levanto da cama em um salto digno de campeonato olímpico. Corro para o banheiro, escovo os dentes, lavo o rosto, faço a barba... tudo apressado, como sempre. Visto minha calça, afivelo o cinto, olho para minha esposa e, em um som que sai de minhas entranhas, quase como um grito suplicante:
- Amor! São 6:20h. Acorda!
Ela, ainda deitada, parece não se importar muito com todos os ruídos propositais que faço como bater a escova na pia, ligar o secador, bater a lâmina de barbear no escafandro da pia... Pouco se importa com que estou fazendo ou deixando de fazer.
Vou em direção a cozinha, no caminho do corredor pego uma camisa qualquer, enquanto estou vestindo olho para a geladeira, além das garrafas d'água e das duas latinhas de cerveja que, após a última ressaca, prometi a mim mesmo que nunca mais beberia, vejo alguns alimentos que serão preparados para o almoço... o resto, vazio.
Irritado, volto para o quarto, abro a porta com a delicadeza de um hipopótamo faminto e, no auge de meu desespero:
- Amor, é sério isso? Preciso ir trabalhar e você ainda está dormindo? Você está de folga?
Ela, sem qualquer reação, suavemente acorda, retira o cabelo do rosto, levanta o braço e com o olhar como de Éris, deusa grega da discórdia, me fita quase como um fuzilamento em campo de concentração, dizendo:
- Você tá ficando doido? Quem diabos vai trabalhar rapaz? Estamos todos em quarentena. Vai dormir!
Neste instante fui arrebatado pelo cinismo compensador de suas palavras, envolto em timidez, constrangido, volto à cozinha, rendido a rotina de acordar às 6h da manhã, todo santo dia, não consigo mais dormir como antes. Na geladeira, pego aquele bom e velho pacote de cream cracker mole, faço um café forte.
Sozinho, sentado à mesa, acompanhado apenas de um pacote de biscoito dormido e um café amargo, tão amargo quanto possa imaginar, ligo à televisão. O jornal da manhã, aquele que só passa os crimes cometidos na noite anterior, não tansmite outra coisa que não seja: "Corona Vírus", ou melhor, "COVID-19", para ser mais formal. O interlocutor afirma: "O corona vírus acaba de matar mais 750 pessoas na Itália, os dados são da OMS...".
- Santo Deus. - Murmuro em meus pensamentos.
Enquanto o jornal destila as auguras que rondam o novo vírus, pego o meu celular, nos grupos de whatsapp estão vários compartilhamentos de correntes sobre política e corona vírus. Parece que tudo, absolutamente tudo, se tornou motivo de política, nem mesmo a morte de várias pessoas pelo redor do mundo faz com que deixem de lado as ideologias. "Sim, somos seres políticos", já afirmava Aristóteles, mas assim... já é demais!
Cansado das informações recheadas de fake news e do "gado" que implora a volta de todos às ruas, sob as alegações de: "vamos todos morrer de fome", volto meu olhar para a tv. Lá o interlocutor afirma: "os Estados Unidos estão em quarentena, porém, o número de casos só cresce a cada instante...". Neste momento, começo a pensar que a senhora evangélica do meu trabalho estava correta: "é o fim dos tempos".
A tv cavalga em notícias daquilo que já estamos cansados de saber, nenhuma novidade sequer parece saltar aos olhos. Minha esposa, anestesiada em seu sono profundo, não acordará tão cedo, imagino o quão sortuda ela é. Retiro a roupa do corpo, pego aquele short de dormir que, basta bater um vento e ele cai, uma mera figura de vestimenta que fingimos estar cobertos.
Sentado no sofá olho para o relógio e de repente são 07 horas. O tempo está desacelerado, nada para fazer, nada para ter com o quê contribuir. De repente me vejo envolto em um desespero, olhando pela sacada do meu apartamento, nenhum carro, nada, ninguém na rua, um verdadeiro apocalipse hollywoodiano, logo penso:
- O que faço, meu Deus?
Repito esta pergunta uma centena de vezes. Sem resposta, escuto o som da porta da sala que continua a ruir uma angústia que insiste em entrar.
Não sei, mas acho que ela já entrou.
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Contos de fim de semana
Short StoryUm compilado de contos forjados em meio a uma quarentena onde as histórias borbulham no ócio gerado pela pandemia.