O dia amanheceu, os primeiros raios solares escaparam pelas frestas da cortina blackout que cobria a janela.
Jardel levantou. Cambaleando, foi em direção ao banheiro e exorcizou suas necessidades. Escovou os dentes, quando ouviu os murmúrios de sua esposa, coberta por vários lençóis:
- Você deixou esse ar condicionado gelado demais.
Ele riu:
- Bom dia amor! Dormiu bem? Eu dormi, obrigado por perguntar - Cinismo era o seu ponto forte.
Ela caiu sobre os lençóis e mais uma vez foi consumida pelo sono eterno.
Ele, bocejou a água, fez um leve gargarejo, cuspiu, limpou os lábios e foi em direção à cozinha. Lá chegou e logo sentiu um forte desejo que vinha de suas entranhas. Não teve jeito, espirrou.
- Atchiiiiiim! - Assoou o nariz e voltou a fazer o que estava fazendo.
Não demorou e novamente aquele desejo:
- Atchiiiim! - Dessa vez mais forte, como se o pulmão desejasse sair pela garganta e tudo.
Mais uma vez assoou o nariz e continuou a preparar o café.
Enquanto os ovos fritavam, Jardel pegou o controle e ligou a tv. Adorava assistir aquele telejornal da manhã. O âncora entoava:
- Notícia. O presidente Bolsonaro foi à manifestação em frente ao palácio. Cumprimentou alguns apoiadores e passeou em frente a esplanada dos ministérios (...)
Enquanto a notícia rolava, Jardel espirrou umas duas vezes, talvez três, quem sabe? Aquela altura já não se importava mais. Colocou o café na xícara, despejou o leite, duas gotas de adoçante e o ovo no pão.
Aproximou-se da mesa e, entre uma notícia e outra, Jardel fora vencido por mais alguns espirros. O catarro começou a escorrer pelo canto direito de seu nariz. Ele, relutante, franziu a sobrancelha, limpou a sujeira com o guardanapo que estava a sua frente, sem se importar muito, o jogou na cesta que estava a alguns metros de distância.
Sua esposa acordou, ainda de cara amarrada, pegou seu cereal, jogou o leite por cima e partiu em direção à mesa, dizendo:
- Não aguento mais isso. Todo dia esse jornal! Jardel. Desliga isso, homem de Deus! - Aquela voz impositiva, sempre assustava o pobre marido.
Como um bom marido, não se importou das lamentações de sua esposa, deu de ombros e fingiu que não ouvira nada. Ela, consumida pelo mal humor matinal, engoliu os cerais às pressas. Se levantou, quando ouviu mais um espirro:
- Atchiiim!
Ela paralisou. Fitou o marido. Ele, totalmente anestesiado com as notícias lamuriosas da tv, nem se deu conta que estava sendo encarado. Ela se aproximou, encostou sua mão esquerda no pescoço dele e logo percebeu que o marido estava a arder em febre.
- Ei... Você não está sentindo frio? - Perguntou em tom da mais pura e inocente curiosidade.
- Não - Respondeu friamente.
- Tem certeza? - Insistiu.
- O que foi Romilda? Diga logo, mulher.
- Eu acho que você está doente, só não percebeu ainda. - Respondeu em tom de aborrecimento, virando de costas, indo em direção à cozinha.
Ela fingiu não se importar. Apenas fingiu. Em seu âmago o temor pulsava como uma bomba relógio.
Enquanto o jornal anunciava o som do fim, tocando a vinheta de despedida, ela voltou. Vestida por um short e camiseta, trazendo consigo o calção, cinto e camiseta de seu marido. Ele limpou o prato, quando recebeu o susto:
- Vista isso! Vamos no hospital agora! - Despejou a muda de roupa sobre a mesa, apontando em tom de autoridade.
Ele fez pouco caso.
A noite, o resultado dos exames: POSITIVO.
Ela franziu a testa, fitou o seu marido com o ar de "Eu avisei!".
Ele, sem se importar, bocejou, dizendo:
- É mesmo? E agora?
- Agora? Você vai se consultar com Dr. Armando. Já estou falando com ele.
- Oh mulher... Deixe de besteira! Vou já tomar o Cloroquina, dizem que tá salvando o povo.
Ela arregalou os olhos, fitou o marido novamente, largou o celular e em tom de ira esbravejou:
- Você tá ficando louco? Não... Louco não, irresponsável! Isso sim! Você acha que o dr. Armando vai lhe prescrever isso, sendo você cardiopata? - Era possível sentir o gosto amargo em suas palavras.
- Claro que sim. Tá todo mundo tomando. Qual o problema?
- Quer saber? Eu desisto! Faça o que você quiser. - Bufou, balançando a mão.
Às 22h, antes de dormir, Jardel respirou ofegante. Sua esposa já estava no terceiro sono, ele arquejou. Arquejou e arquejou. Ela, apenas dormia o sono dos inocentes. De repente um grito abafado esvaiu-se em meio aos arquejos. Romilda acordou.
- Meu Deus!! - De olhos arregalados, ela viu seu marido arroxear, os lábios inchados, olhos arregalados.
A tv estava ligada, o telejornal anunciava:
"Cloroquina salvou o presidente..."
Romilda correu, pegou seu celular e clamou para o 190 o socorro. Do outro lado o médico disse o passo a passo do que fazer, ela, disciplinada, obedeceu.
Em poucos minutos a ambulância chegou, foi possível ouvir a sirene tocar.
O fato é: Com cloroquina, sem cloroquina, Jardel precisou entubar-se.
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Contos de fim de semana
Short StoryUm compilado de contos forjados em meio a uma quarentena onde as histórias borbulham no ócio gerado pela pandemia.