Esquecido

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Alberto é um senhor que, já beirando seus 62 anos, em meio a pandemia, caiu doente. Os sintomas eram claros: sudorese, febre, tosse insistente, uma leve tontura... Coisas de quem está mesmo doente, sem sombra de dúvidas.

Intrigado por saber quem o havia passado aquela infame doença, balbuciava, frente à TV, as amarguras das lembranças de onde esteve nos últimos dias: 

- Casa... Padaria... Ah! Já sei! Foi o Angenor. Aquele infeliz não lava nem as mãos, estava tossindo e espirrando feito um cão lazarento. Foi aquele amundiçado, certeza! - Contava para si aqueles infortúnios.

Entre uma passada de canal e outra, lá pelas 11h da manhã, o jornal anuncia: "Higiene básica, lave às mãos, não toque o rosto...". Enquanto o interlocutor afirma os dizeres, Alberto murmura:

- Vou gravar e mandar pra o Angenor. Vai que ele se toca... 

Enquanto gravava, com o celular em horizontal, estirado à frente da TV, a notícia. Neste momento, Alberto foi arrebatado por uma angústia terrível. A ansiedade tomou de conta de seu olhar... Alberto percebe que é considerado "faixa de risco" e, como o próprio jornal anunciara, a probabilidade da morte é quase de cinquenta por cento. Alberto corre para a janela, busca o ar que, por alguns segundos, lhe faltara em seu conforto do sofá. Sua esposa, temerosa, corre para socorrer, balançando o pano de prato frente ao seu rosto, jogando um ar, na intenção de saciar a falta.

(...)

Após o almoço, Alberto liga a velha máquina, uma verdadeira peça de museu, o famigerado computador, com um processador dos tempos do Windows XP, com uma câmera de webcam, tão velha quanto. Lá, o velho começara a rotineira consulta com amigo da família, um jovem médico, recém formado. Durante a anamnese, Alberto arranca de suas entranhas aquela pergunta tão atroz:

- Doutor, vou morrer?

Do outro lado o médico, recém formado, amigo da família, fingiu, com um nobre descaso, um otimismo impossível. Rindo, respondeu:

- Mas o que é isso seu Alberto? Você vai ficar bom, tenho pacientes que estão em estado mais crítico que o seu... - E continuou explicando histórias no intuito de levantar o astral do ancião. 

Contrariado, Alberto queria, em seu íntimo, sacar a arma e disparar, bem no meio da fuça do jovem doutor, um tiro certeiro, daqueles de filme de ação. Não perguntou mais nada. Olhava para a mulher, que estava sentada a sua esquerda, na cadeira de balançar, tricotando um bordado para a filha que viria visitá-los no dia seguinte. Enquanto fitava a sua esposa Alberto pensava: "Vai esquecer". Seria esquecido pela mulher, filhos, amigos e vizinhos, assim como esqueceram de si, em meio a pandemia mortal. Entre uma tosse e outra, ele bebia sua água, somada ao coquetel de remédios e polivitamínicos receitados pelo jovem médico.

Ao fim da tarde, o ócio da quarentena consome o pobre ancião. Olhando pela sacada do seu apartamento, entre uma tossida e outra, o velho pega o celular e liga, via chamada de vídeo pelo whatsapp, para o seu amigo, jovem rapaz de vinte e poucos, recém casado e também fadado à clausura. Quando o amigo atendeu, de supino, Alberto falou:

- Descobri o remédio para a insônia! - A doença tirara-lhe o sono. 

- Sério? Qual é o remédio? - O jovem amigo, do outro lado, finge uma curiosidade empática. 

- Enquanto minha esposa vai dormir fico imaginando o meu velório... - Tossiu. - Imagino um local bem bonito, com um padre jogando água benta e rezando as jaculatórias do terço, numa capela parecida com aquela próxima ao boteco de Zé Ramela... - Tossiu de novo. - Depois de uns 20 minutos pensando, sou consumido pelo sono. É terapêutico! 

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