TIRAR 10 É IMPORTANTE?

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O tempo avançou e o professor presunçoso do capítulo pregresso não mudou; para evitar novos conflitos e frustrações, passei a encarar o desempenho ruim na disciplina dele como algo natural. Já que tirar boas notas era impossível, contentei-me em aprender, como eu já vinha fazendo em outras matérias ao longo da graduação.

– "Aprender" e "tirar boas notas" são a mesma coisa – diziam algumas pessoas.

Então comecei a questionar isso com o auxílio, quem diria, do famigerado docente incontestável que, um dia, entrou na sala dizendo:

– O orgulho do professor é ver que seus alunos estão evoluindo e que seu trabalho não está sendo em vão...

A princípio me surpreendi, imaginei que o docente fosse começar a aula contando alguma história de superação discente.

"Será que ele vai falar de algum aluno que, mesmo não sendo o melhor da sala, conseguiu um ótimo emprego ou desenvolveu um projeto que pode trazer grandes benefícios à sociedade?", iniciei.

O professor se sentou e pegou um pacote que estava dentro da mochila dele.

"Ou quem sabe a história de um discente que, mesmo com pouco apoio financeiro e familiar, conseguiu finalmente se formar no curso depois de muito sacrifício", continuei.

Em seguida, o docente tirou do pacote as avaliações aplicadas na semana anterior, olhou para uma das folhas e explicou:

– É a primeira vez que dou uma nota máxima. Até este momento, nenhum aluno havia respondido qualquer prova elaborada por mim com tamanha perfeição para merecer um 10.

"Como sou ingênuo!", terminei.

Para o professor em pauta, e para muitos outros que conheci, a evolução do aluno era limitada pelo desempenho discente nas provas. Aquilo que o aluno conquistava fora das instituições de ensino e pesquisa, o que pressupus inocentemente, não tinha a menor importância. Nas palavras docentes, o importante mesmo era o 10.

"Mas o que é um 10?", eu me questionava.

"Um número; se fosse um 'A', seria uma letra; ambos têm a função de definir se uma pessoa será aprovada ou não, em disciplinas ou processos seletivos."

Essa era a minha resposta, não a do sistema de ensino:

"Os números e letras usados em escalas de avaliação também servem para criar uma ilusão de aprendizado, gerar competição entre alunos e até segregá-los."

Com frequência, ouvi discentes se lamentando:

– Não entendo como as notas permanecem intactas no histórico escolar durante anos e o conteúdo aprendido desaparece poucos dias após a prova ou término da disciplina.

Os bem-humorados cantavam:

"Quase tudo que aprendi, amanhã já esqueci; decorei, copiei, memorizei, mas não entendi" (4).

Tal lamúria discente me lembrava de outra frase corriqueira, só que proferida por docentes, normalmente os do colegial e da universidade, no primeiro dia de aula de uma disciplina elementar:

– Esqueçam tudo o que aprenderam até agora!

Os alunos entendiam o pedido como um alerta de que, nestes níveis de ensino, colegial e graduação, o conteúdo seria mais complexo e, por esse motivo, teriam que estudar para valer. O que poucos percebiam é que, com a frase em evidência, o professor do colegial esnobava o primário e o ginásio do discente, e o docente universitário desdenhava todos os anos que o aluno passou na escola.

Em suma, os professores nos pediam para fazermos exatamente o que sabíamos fazer de melhor, esquecer conteúdo supostamente aprendido; e, indiretamente, tais docentes afirmavam que as escolas que havíamos frequentado não serviam para nada, rebaixando seus próprios companheiros de profissão.

Reforçando a noção de que "tirar boas notas" era sinônimo de "sapiência" e de que "tirar notas ruins" era sinônimo de "imbecilidade", outras frases eram exclamadas à exaustão, como:

– Fulano é tão inteligente, ele só tira 10!

– Sicrano nunca tira notas boas, já não sei mais o que fazer com ele!

Falas equivocadas como essas intensificavam ainda mais a competição discente. O aluno competidor acreditava na nota como unidade de medida do conhecimento humano; não satisfeito, considerava-se um ser humano superior aos colegas por conseguir notas maiores que as deles.

Por ironia do destino, frequentemente o discente que era considerado ruim na escola, por tirar notas baixas, destacava-se mais que o aluno nota 10 quando ambos passavam a disputar cargos no mercado de trabalho. Isso causava revolta no discente competidor e fazia com que ele se sentisse injustiçado.

Os impasses em questão teriam sido evitados com o uso frequente, em casa e nas escolas, da frase:

"Beltrano não é bom nesta disciplina, mas isso não significa que ele seja burro, há muitas outras áreas nas quais ele pode se destacar."

Infelizmente, nunca vi um docente que tenha me dado aula dizer algo parecido...

Pelo contrário, os professores intensificavam ainda mais a ilusão de aprendizado e a competição ao compactuarem com a ideia de que os alunos precisavam ser separados em diferentes salas usando as notas como critério. Os discentes com as maiores notas ficavam na turma A, os demais eram distribuídos nas turmas B, C, D... conforme as notas decresciam.

"Quais os reais benefícios de uma segregação como essa?" foi mais um questionamento recorrente em minha mente, só que, para tal pergunta, não cheguei nem perto de uma resposta plausível.

Todos os reveses inerentes à busca pelo 10 previamente citados possuíam um agravante típico de minha geração: as redes sociais. O caso que abre este capítulo, por exemplo, foi parar na internet, já que o docente emproado publicou um texto para mostrar ao mundo que seu trabalho não estava sendo em vão, enquanto o aluno que tirou o 10 publicou, também online, uma foto de sua prova.

Em plataformas como Facebook, Twitter, Instagram, Tumblr, Snapchat, WhatsApp e derivados, exauri-me vendo:

· Aluno compartilhar foto de cadernos, livros, computadores e/ou calculadoras para mostrar ao mundo que estava estudando;

· Estudante compartilhar foto do boletim inteiro para mostrar ao mundo que só tirava boas notas;

· Vestibulando compartilhar foto da lista de aprovados do processo seletivo para mostrar ao mundo que passara em uma conceituada universidade;

· Concurseiro compartilhar foto de seu nome no Diário Oficial da União para mostrar ao mundo que ganhara um cargo público;

· Empregado ou empregador compartilhar foto na mesa do escritório, de roupa social e óculos, fazendo pose de intelectual, para mostrar ao mundo que estava trabalhando...

O brasileiro fazia tudo isso esperando receber muitos likes e comentários positivos, até mesmo de pessoas completamente desconhecidas; utilizando as "palavras do filho de Davi, rei de Jerusalém: vaidade de vaidades, diz o Eclesiastes, vaidade de vaidades! Tudo é vaidade" (5).

Eu fazia parte de um povo ao qual não bastava ser, também era preciso parecer uma boa pessoa (6); ou melhor, era necessário aparecer para o maior número de pessoas possível; o que se aplicava perfeitamente na área do ensino, já que professores e alunos queriam receber o 10 dos outros, quando, na verdade, precisavam do 10 de si mesmos.






(4) Refrão da música "Estudo errado", lançada em 1995 pelo cantor Gabriel, o Pensador.
(5) Eclesiastes, capítulo 1, versículos 1 e 2, presentes na "Bíblia".
(6) Assim como o pai ensina ao filho no conto "Teoria do medalhão", de 1881, escrito por Machado de Assis.

Memórias póstumas de um aluno qualquerOnde histórias criam vida. Descubra agora