Patas e Jantares

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— Eu não sabia que o Kali tava morando aqui. Fico feliz que vocês ficaram juntos. — disse Polo parecendo genuinamente preocupado pela primeira vez desde que tinha chegado.

— Foi como eu disse, a nossa vida continuou aqui. É o que dá pra fazer.

— O que você andou fazendo? Alguma coisa emocionante? Viajou pelo mundo como queria? Foi pra Índia conhecer a terra dos seus bisavós?

— Não...

— Ué, porque não? — a dúvida no olhar dele era genuína.

Para Polo, a Vidya que ele conheceu foi uma pessoa intensa, com um bocado de sonhos e um desejo enorme de explorar o mundo e viajar. Quando lutaram juntos em Polaris tiveram pouco tempo pra explorar em meio à guerra civil que assolou os dois povos. Mas Vidya brilhava cada vez que tinha a oportunidade de conhecer alguém novo ou desfrutar das diferentes culturas dos Polares. Imaginar que ela voltou pra terra e não seguiu os seus sonhos era estranho, até pra ela. Mas a vida tem seus próprios planos quando você não está vivendo aventuras doidas e salvando planetas de guerras iminentes.

— Nós não somos salvadores da pátria aqui. Eu só segui a vida, e a vida é rápida e pacata. Eu fui estudar, achando que tava seguindo o caminho para aqueles planos. Mas as contas chegam mais rápidas que os sonhos. Então eu fui ficando.

— Que pena...

— Não, tá tudo bem. Eu tenho outras coisas que eu quero fazer agora. Tem um cargo que eu quero, um documentário que eu tô indo atrás e coisas do tipo. Os sonhos... a gente adapta.

— Eu queria ter feito algo por você, pelo Kali. Tinha tanta coisa pra arrumar por lá, tanta gente pra ajudar. Que eu sequer tive tempo pra pensar em mim ou em vocês. Desculpa.

Enquanto ele passava a mão nos cabelos, parecendo sem graça, Vidya foi se perdendo em pensamentos.

"Ih essa cara de quem tá segurando o mundo nas costas...Ele fica tão fofo... Se segura mulher! Você faça o favor de se segurar, demônia!"

— Como está a situação do reino? Tiveram alguma evolução no tratado de paz?

— AH NÃO! — a voz entoou pela casa toda enquanto Kali saia do quarto nervoso. — É bom estar tudo perfeito por lá. Afinal, se você não voltou por tanto tempo deve ter se ocupado horrores! Então é bom estar todo mundo perfeitamente bem!

Vidya suspirou tão fundo quanto podia. Não bastava a adolescência virando urso, ela tinha que voltar a lidar com dois tontos nervosinhos outra vez. Era uma vida muito surreal. E justo na primeira semana de trabalho dela. Era incrível como as conversas deles sempre pioravam muito rápido. O melhor a fazer era sempre intervir antes que piorasse mais.

— Bom, gente, a conversa tá boa mas vamos parando por aqui né? Vocês não estão com fome?! Acho que a gente podia pedir comida, né? Tem bastante gente em casa e não tem nada na geladeira. Amanhã eu tenho que sair cedo e você também, certo Kali? Sabe como é, as pessoas logo devem começar o projeto verão na academia, ou.. sei lá, qualquer coisa do tipo. Aí depois vemos isso. Vocês querem macarrão ou espetinho?

— Eu não quero macacão, não. Não tem aquela carne redonda que eu comi naquela época?

Por um segundo ficou todo mundo sem reação, depois até o espírito de urso-do-sol sentado na sala caiu na risada.

— Nossa, quem diria o herdeiro falando assim feito uma criança de seis anos. Haha! 

— Não é!? Caraca Kali, pensa como foi andar com ele pra lá e pra cá por meses! As pessoas achavam que ele era um alienígena, e o mais doido é que nem estavam errados e eu tinha que sufocar várias risadas. Eu parecia um sapo coaxando!

Até Nevasca, o urso polar de Polo, apareceu e ficou com a mesma cara de confuso que Polo estava. Pros dois era completamente incomum alguém rindo deles. Ser herdeiro e depois governador de uma nação faziam com que tudo isso fosse surreal. Ninguém ria, ninguém contava piada, relaxar era quase um xingamento. Eram só digitais recolhidas, aprovação de decretos e compromissos públicos. Todos os dias, por quinze anos. Até o cabelo ele deixou grande porque não tinha tempo de pensar em nada. Polo se sentiu sortudo por poder voltar à terra. Teve até um pouco de inveja por Kali ter ficado. "Pelo menos ele é livre aqui."

***

Vidya se tranquilizou um pouco com o alívio da tensão. Fez ambos prometerem não brigar nem conversar nada sério durante o jantar. Então eles puderam passar alguns minutos conversando e rindo. Os ursos ficaram deitados na sala.

Kali voltou com muitas histórias da Malásia e como foi desastroso ele decidir ir pra lá sem muito dinheiro e sem saber falar a língua de ninguém. Vidya contou que sua mãe tinha se mudado para o interior e sobre como conseguiu o estágio mesmo depois de confundir a editora chefe da revista com uma candidata e dizer que a vaga estava pagando mal, mas que ia topar pela experiência. Polo ria bastante dos dois, e bebia refrigerante como se fosse um elixir dos deuses. Como se tudo aquilo fosse apenas um encontro entre três amigos antigos.

Mas durou pouco. Pois assim que retiraram os pratos o tratado entre os dois se quebrou.

— Eu tenho tentado evitar, mas não vou conseguir, Vidi. — Kali tentou expressar algum arrependimento ao olhar para Vidya, mas parecia mais que estava saíndo faísca dos olhos dele. — Hel está segura? Conseguiram reconstruir a capital dos Solares?

— Está como dá pra estar. — Respondeu o outro com rispidez. — Não é algo que você devia se preocupar. Você não quis voltar antes.

— Voltar antes? Desde quando ele podia voltar antes que nenhum dos dois me contou?

— Vim buscar Kali pelo menos três vezes, Vidya. Também foi ele que me impediu de te ver. Mas aparentemente ele não tava falando isso pra você. Eu posso estar errado em várias coisas, mas algumas nem tanto. E ele devia ser o primeiro a admitir isso.

— A única coisa que eu admito é que não confio no que você andou fazendo, mas continuo te dando chances. Mas não sei se eu vou fazer o mesmo dessa vez. Como está Hel? Como está o MEU POVO?

Em resposta à gritaria, Nevasca acordou de supetão. Enquanto ele andava lentamente na direção de Kali, sua armadura etérea feita de pesados cristais de gelo se formou novamente no torso do urso. Pronto para defender seu protegido, como nos velhos tempos.

Vidya não teve tempo pra pensar, soltou os pratos no chão e se jogou por cima de Kali antes que o urso pudesse ficar de pé e atacar com as patas enormes. Na mesma hora seu corpo se transformou e grossos pêlos escuros tomaram tudo. Ela cambaleou e esbarrou na mesa, em Kali, dando passos vacilantes pra trás. Aparentemente a habilidade de se tornar um urso enorme não tinha a abandonado. Agora sim, parecia com os velhos tempos. Polo e Kali brigando e Vidya em forma de urso tentando parar eles e os ursos espirituais.

Nevasca parou de pé. Expressando a mesma surpresa de Polo. Vidya contemplou as próprias patas. Soltou um urro de urso e falou com a voz grossa e embargada:

— Ah, inferno! Justo hoje que saia episódio da fic que eu leio...

Eu era uma escolhidaOnde histórias criam vida. Descubra agora