A cena que a assistente Meli interrompeu foi um pouco íntima. Polo havia estendido a mão para segurar a mão de Vidia e estava levantando de sua própria cadeira para abraçá-la e talvez matar um pouco mais da saudade do rosto quente dela perto do dele. No susto ele bateu na mesa, tentando se recuperar rapidamente e entender o que estava acontecendo.
— Como assim? Kali foi levado?
— Eu não sei senhor, eu só sei que Paccala invadiu a sala com uma das adagas gélidas do antigo reino e saiu por uma das entradas secretas.
Vidya olhava de um para outro, se sentindo cansada e ao mesmo tempo surpresa.
— Convoque os oficiais secretos! Peça para que eles vasculhem os arredores e me contacte pelo rádio. Eu vou sair pelo corredor secreto daqui e acessar o hall.
— Sim!
— Vidya, temos que sair. Agora! — Enquanto falava Polo já ia puxando Vidia pelo braço, Apertou outro botão escondido pela parede reflexiva, pegou uma bolsa dentro do buraco na parede e já foi procurando o outro botão para abrir o corredor. Mas Vidia torceu o punho para se soltar e parou no meio do corredor fundo que adentrava o prédio labiríntico.
— Me solta.
— Não Vidya, nós temos que ir.
— Você não tá prestando atenção nos detalhes de novo! Me solta! Castor não veio me pedir ajuda, o que significa que Kali provavelmente tá andando por aí em forma de urso. Deve ter se desvencilhado das mãos sujas dela há alguns minutos. — Vidya teve que parar e respirar profundamente para não se exaltar. — Eu vou achar ele, e depois eu vou dar na cara daquela mulher!
— Vidi! Não! Não compensa! Ela vai deixar o cargo em algumas horas, só está desesperada. Por favor, não comece a agir de cabeça quente!
— Polo, minha cabeça não tá quente. Ela tá transbordando já. Nós não podemos mais tolerar isso. Eu vou achar ele e eu vou resolver do meu jeito.
Vidi deu as costas e começou a voltar para a sala.
— Se você for e enfrentar ela, não vou poder ficar com você. Eu ainda preciso estar do lado dela Vidi.
Ah, ali estava novamente. A paciência e a raiva contida e comedida de Polo em oposição ao sangue quente que ardia no corpo de Vidya em contraste. E não é que Vidya tendia aos Solares, o que pode parecer quando se olha dessa forma. Mas a verdade é que uma coisa não tinha a ver com a outra. Vidya sempre foi esquentada porque achava que a vida tinha urgência. Que certas coisas não podiam ser resolvidas aos poucos, porque eram importantes demais e essenciais demais. Para ela a paz tinha pressa. E para Polo tudo era uma questão de estratégia. Ele esperava pacientemente por aquilo que considerava um bom futuro. Já para Vidya, cortar caminho era importante pois ela não sabia quando ia ter controle sobre o próprio destino outra vez. Ela estava com raiva, mas ainda estava consciente. E isso era uma oportunidade que ela não deixaria passar. Ela parou no meio da sala e olhou para Polo como quem se despedia.
— Conversamos sobre isso depois.
A porta de pedra polida foi se fechando lentamente. Enquanto os dois se encaravam.
A essa altura Polo sabia as diferenças entre o que passava pela cabeça dele e dela. Então apenas concluiu lentamente depois que a passagem se fechou e a escuridão o engoliu.
— Acho que não haverá depois. Mas corre Vidya.. Corre sim.
Polo acionou um rádio ou dois enquanto andava por corredores de pedra clara e bruta. Deu instruções para oficiais e senhas de acesso para os quartos mais usados por Paccala. Enquanto andava pelo corredor começou a ouvir passos atrás dos dele.
— Eu sei que você tá aí. Eu sei que eu devia só emitir uma ordem de prisão e ir achar ela. Mas eu tenho que dar mais uma chance. Ela realmente se conteve nesses últimos anos. Tenho que dar essa chance a ela.
Os passos atrás dele pararam e ele escorou na parede. Ainda sem olhar pra trás.
— Nevasca. Eu queria poder fazer diferente. Mas não dá, tem muitos sentimentos internos e externos sobre mandar prender a minha mãe, a ex governante do povo. Especialmente agora.
Ele parou e respirou profundamente, fechando os olhos.
— Senhor, desculpe interromper, mas identificamos a localização de Paccala!
O oficial de terno estava quase tão corado quanto Polo. Mas tentou disfarçar repetindo várias informações que lembrava sobre o incidente com Paccala e seus últimos passos.
Ela havia invadido a sala onde estava sendo proposto o perdão de guerra de Kali com uma adaga, bradando que mataria o herdeiro dos solares para cobrar os pecados dele. E depois saiu por uma passagem secreta. Os oficiais haviam encurralado ela no jardim de pedra.
Polo não deu muita atenção, havia um espaço na mente dele separada que sempre estava atenta. No entanto, boa parte da mente dele estava ocupada pensando que essa poderia ter sido sua última chance de ouvir Vidya e conseguir entrar na vida dela com o coração e aberto e disposto a fazer diferente.
Ironicamente sentiu saudades de quando estava livre de tudo isso, fugindo com ela no meio de uma guerra. O que pareceu azedar sua língua. Por fim ouviu algo do oficial que precisava de sua atenção. Paccala estava com um machucado no braço. Imediatamente ele apertou o passo e partiu para um outro corredor à direita. Seguido pelo oficial.
***
Vidya correu na outra direção, Meli informou a ela o caminho até o salão onde havia sido o acordo com Kali e os representantes Solares. Ali as pistas eram poucas, sabiam por onde eles tinham sumido parede adentro mas ninguém tinha acesso à porta escondida. Não havia botão na parede. Foi então que Vidya sentiu um cheiro doce de suor e sol, e resolveu confiar no seu faro. Seu corpo voluntariamente de transformou no enorme urso preto e massivo do Guardião. As pessoas à sua volta prenderam a respiração por um minuto enquanto as patas do urso alcançavam o chão.
Lá estava. O cheiro agora era inconfundível. Ela podia sentir através das paredes e era isso que seu subconsciente pedia. Queria que ela seguisse o cheiro de sol e suor e não o cheiro de algodão-grama. Ainda que houvesse cheiro de sangue junto ao algodão-grama, ela sentia que havia algo importante do outro lado. Sua visão se dividia entre seguir corredores e passar correndo por portas e casas e a visualização de um longo corredor com uma luz iluminando a saída.
Por fim, já fora do prédio ela seguiu por uma rua mais antiga, com pedras disformes cobrindo a passagem. Havia um muro que separava o quarteirão, e uma placa honorífica que ela não parou pra ler. Ali as casas já não eram bonitas e exuberantes feitas com pedra eterna como no resto da cidade. Era um lugar com casas antigas, feitas de madeira ou pedras toscas. E haviam muitas casas destruídas, crescendo mofo nas toras partidas e nas pedras espalhadas. Havia um quê de inércia naquele lugar. Havia móveis dentro das casas e portas estouradas.
Vidi, ainda como urso, avistou uma coisa familiar. havia um hospital destruído no fim da rua, a entrada de ambulâncias tinha marcas de garras na porta. Essas já não pareciam tão antigas. Eram recentes e cheiravam a remorso adormecido.
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Eu era uma escolhida
Ficción GeneralVidya é uma adulta comum, mas no passado ela foi a escolhida de Polaris. Um planeta camuflado pela estrela polar. Uma história leve sobre como continuar a vida e sobre as pequenas reviravoltas da vida adulta e sobre perder a paciência com gente pres...