Vidya foi encaminhada de volta para o enorme prédio do governo. A mulher de brincos grandes a guiou por corredores de teto alto. Sempre olhando para os ombros para conferir se Vidya ainda estava seguindo. Quando chegaram ao final de um corredor cheio de pequenos vasos com jardins de pedras ela abriu a porta e fez sinal para Vidya entrar.
O frio cômodo tinha apenas uma mesa com duas cadeiras, alguns sofás e esculturas de gelo que nunca derretem. Sem saber o que fazer com seu receio e seu desconforto Vidya ficou de pé. Não muito tempo depois pode ver um vulto se aproximando de dentro de uma das paredes reflexivas. E reparou que o mesmo se repetia em diversas sessões da sala. Parecia que ela estava sendo encurralada por todos os cantos. Por todas as paredes.
Os vultos pararam, estenderam a mão para a parede e de uma das divisões da parede uma placa de gelo se abriu como uma porta.
— Polo! M.... Eu ia estourar essa estátua na sua cabeça!
— Caramba! Não Vidya! Desculpa! é só um mecanismo de defesa da sala! Desculpa!
— Sinceramente, você deve estar tentando me causar um infarto! Não é possível...
— Desculpa! É que essa é minha sala particular, bom, do futuro Governante, onde ele pode ter conversas particulares.
Havia um desconforto no ar e Vidya ainda segurava a pequena estátua nas mãos. Polo chegou perto dela, afagou os cabelos e pegou a estátua da mão dela, respirando fundo por um segundo.
— Eu sei que a gente tem muito o que conversar, mas eu quero tirar um assunto da frente logo... Senta ali na mesa, a cadeira não é tão desconfortável quanto parece. Vou fazer um chá quente pra você.
Vidya acenou com a cabeça e foi se sentar.
Polo foi até uma das paredes, apertou alguma coisa que Vidya não conseguiu identificar e uma abertura se revelou na parede. Um pequeno armário onde haviam potinhos cheios de ervas e algum tipo de chaleira elétrica. Polo serviu duas xícaras de algo laranja e doce e trouxe à mesa. Sentou, bebeu um gole e ficou olhando pro nada.
— A reunião acabou. Alguns conselheiros falaram em seu favor, disseram que provavelmente era vergonhoso para o guardião que demoramos tanto tempo para mudar as coisas. Um monte de gente ficou sem graça. E prosseguimos. O documento está assinado. Só precisam do carimbo real que existe na coroa. Mas essa é uma honra que só você pode fazer.
— Entendo...
— Kali foi pra uma reunião também. Mas constituída só por conselheiros Solares.
— Que?!
— Ele vai ficar bem, já tem um documento pra revogar o exílio dele. Tem alguns tios dele lá também. Vai ficar tudo bem. — Polo sorriu e prendeu os longos cabelos com alguma coisa que tinha no bolso e voltou a falar com mais leveza. — Vidya. Eu tenho uma coisa muito importante pra te falar. Eu consegui um jeito de quebrar a linhagem do Guardião.
Ele fez uma pausa para que ela reagisse, mas Vidya estava tão perplexa que tudo o que conseguiu fazer foi piscar espantada e continuar esperando ele falar algo que não parecia uma completa loucura saída das idéias doidas dele. Polo sorriu e tomou uma das mãos dela que estava cruzada sobre a mesa.
— Vidi, você vai poder ceder o seu posto pra alguém! É uma regra muito antiga, e precisou de um bocado de pesquisadores que ainda sabiam as línguas antigas para entendermos como acontece a escolha do guardião, para que pudéssemos quebrá-la. Então demorou um bocado pra gente conseguir recriar o ritual. E deixar você livre disso. Finalmente!
Vidya soltou a mão dele e ficou olhando pra baixo. Em algum lugar de sua memória se lembrou das conversas que teve com Polo enquanto eles escapavam de ataques pela cidade. Fugindo de um lado e se escondendo do outro. Conversando pelos cantos sobre como era difícil pra ele ter que ser o herdeiro do trono de um lugar que não queria mudar nem evoluir.
Lembrou também de quando ficou presa num desabamento depois que ela lutou com Kali. Enquanto ele tentava suturar o machucado que ele mesmo tinha feito no pescoço dela. Quando ela disse que as coisas podiam ser diferentes ele chorou um bocado, e ela reafirmou dizendo que ele não tinha obrigação de seguir nem a mãe dele, nem os comandantes das tropas. Que ele podia ser livre pra ser o que ele quisesse.
Uma chance dessas nunca tinha se apresentado pra ela.
— Todo esse fardo e toda essa responsabilidade não precisa ser mais sua se você não quiser Vidi. Temos pelo menos duas pessoas, dois conselheiros antigos que estão dispostos a tomar seu lugar. Como sempre, a mente do Guardião ainda vai conter partes de você, e isso continuará a guiar esse caminho que nós traçamos... O caminho onde tudo pode existir junto, e que você pode ser só você.
— Eu devia fazer isso? Eu devia, não devia?
— Se ainda for isso que você quer...
— Eu não tinha nem idéia que você ia passar esse tempo todo buscando isso...
— Não foi o tempo todo, e eu ainda tenho um bocado de coisas pra me desculpar. Porque eu deixo os compromissos daqui subirem à minha cabeça com facilidade. Mas são as poucas promessas que eu pude cumprir, ajudar você a descansar dessas responsabilidades e juntar todo mundo num mundo melhor. Eu fui um idiota de não ter ido te ver na formatura. E Nevasca entrou diversas vezes nos meus sonhos pra me mostrar o quanto você chorou aquele dia. Ele também mostrou que você bebeu e dançou um bocado escondida. E apesar de ser engraçado me deixou sem graça.
Vidya não sabia onde enfiar a cara. Mas o seu coração acelerou mais rápido e um monte de coisa foi pra fora.
— Você é um idiota..Você podia só ter aparecido e pedido desculpas. Eu teria te esmurrado de novo, mas pelo menos tava tudo bem à essa altura. Eu preferia estar só agradecida agora, e não agradecida e cheia de raiva. — as lágrimas que brotaram tinham um sabor agridoce estranho. — Era pra ficar tudo bem.. Não precisava ter feito disso uma punição.. não precisava! Eu agradeço.. Mas não precisava!
Polo passou a mão pela testa.
— Eu sei lá, era a única coisa que eu achei que podia fazer. Eu tava realmente querendo ajudar. Você vai me aceitar? Digo, aceitar fazer o ritual?
A porta de mármore frio se abriu de uma vez, a assistente que agora tinha cachinhos saindo de seu penteado parecia ter corrido um bocado.
— Polov, conselheiro! Kali... — falou entre a respiração apressada — Kali foi levado por Paccala!
Arte por Lud Magroski
VOCÊ ESTÁ LENDO
Eu era uma escolhida
Fiksi UmumVidya é uma adulta comum, mas no passado ela foi a escolhida de Polaris. Um planeta camuflado pela estrela polar. Uma história leve sobre como continuar a vida e sobre as pequenas reviravoltas da vida adulta e sobre perder a paciência com gente pres...