Capítulo 4: Léo
Assim que entrei em casa liguei pra minha mãe e tudo correu como o esperado. Precisei ficar alguns minutos na chamada para convencê-la de que eu estava bem, que eu já tinha comido e que eu tomaria cuidado. Logo que desliguei, decidir tomar um banho.
A sensação da água caindo sobre minha pele me acalmava, mas hoje ela trazia uma sensação diferente.
Passei a mão pelo vidro úmido do boxe, estava fria em contraste com o banho quente. Sem pensar muito, me aproximei do vidro, de modo que todo o meu corpo estava pressionado contra o vidro. Encostei os lábios na face do boxe, imaginando a sensação de uma boca suave.
Então eu me dei conta de que provavelmente parecia ridículo. Desliguei o chuveiro, troquei de roupa e fui ouvir um pouco de música.
***
Naquele dia mais tarde, Gi passou na minha casa pra me fazer companhia até minha mãe chegar. Estávamos deitados na minha cama, as cabeças em lados opostos.
- Já pensou em fazer intercâmbio, Gi?
- Como assim? Ela estava distraída.
- Intercâmbio. Morar fora.
A ideia de sumir me ocorria sempre desde que me lembro, porém era sempre como uma daquelas situações impossíveis que as pessoas gostam de fantasiar.
Impossível até semana passada, quando a pedagoga entrou na sala dizendo que haviam vagas abertas de intercâmbio para alunos do ensino médio. A ideia me animou, não seria exatamente fugir, meus pais saberiam onde eu estivesse. O fato de que eles simplesmente soubessem e que não pudessem ir me checar de 5 em 5 minutos não me desagradava nem um pouco.
- Ah, eu não. Preguiça. Por quê?
- Eu estive pensando nisso. Sei lá, ir pros Estados Unidos.
- Argh, Estados Unidos não, Léo. Legal mesmo é a França. Imagina passar férias em Paris?
Típico de garota romântica que deseja um drama de verão, pensei.
- É que, Gi, eu não to falando só de férias. E fora que, sei lá, Estados Unidos, França... Qualquer lugar serve. Eu só queria ir embora.
Houve uma grande pausa.
- Mas por que isso agora, Léo? Ela finalmente me perguntou.
- Não é de agora que eu to pensando nisso. Já tem um tempo
Ela continuou quieta, especulando. Achei melhor dar uma explicação.
- É que imagina que legal você poder ir pra algum lugar onde ninguém te conhece. Ninguém sabe quem você é, sabe? Você pode até inventar uma personalidade nova se você quiser.
- Mas você não gosta da sua personalidade? Perguntou, cautelosa.
Como explicar que, enquanto eu estiver aqui, não importa quantas personalidades eu tenha, as pessoas simplesmente vão continuar me vendo como sempre me viram?
- Gosto,-Respondi finalmente- mas o problema não sou eu.
Ouvi ela puxar o ar pra dizer alguma coisa quando alguém abriu a porta.
- Gi, vai ficar pra jantar?
Minha mãe nunca batia na porta.
- Eu vou sim, obrigada Laura.
- Quando ficar pronto eu chamo vocês.
Ela respondeu e fechou a porta.
- E sua mãe, Léo?
- O que tem ela?
- O que é que ela acha disso?
- É claro que ela não sabe, né?
- Então você pretende mudar de país sem contar pros seus pais?
- Quem sabe?***
Estávamos sentados nos degraus da escada que dava pra entrada da escola conversando enquanto esperávamos quando ouvimos passos em nossa direção.
- E aí, vamos? Gabriel finalmente tinha chegado.
- Vamos. Giovanna respondeu enquanto puxava meu braço.
- Eu não vou com vocês hoje. - Respondi. - Hoje eu vou almoçar na casa da minha vó.
- Ah é, hoje é quarta. Desculpa Gabriel, eu vou levar o Léo na casa da vó dele, tá?
- Não precisa Gi, eu vou sozinho.
- Imagina, é aqui do lado. Eu te levo.
- Então, é aqui do lado, eu posso ir sozinho.
- Tem certeza, Léo?
- Tenho sim.
- Tudo bem, então. Você quem sabe.
Ela me deu um beijo na bochecha e saiu com os passos do Gabriel acompanhando os seus.
Meu celular tocou, era o toque da minha mãe. Avisei que já estava indo pra casa da minha vó e que assim que chegasse lá ligaria pra ela avisando.
Peguei minha bengala e comecei a fazer o caminho que levava pra casa da minha vó, contando os passos enquanto eu andava.
Assim que cheguei no final do pátio, senti uma movimentação nos meus lados, como se tivesse alguém ali. Tateei o ar e não encontrei nada. Só o vento, pensei, continuei andando. Senti uma respiração quente na minha nuca, a sensação de estar sendo seguido estava lá. Porém, quando estiquei os braços a procura do meu perseguidor me esqueci de parar de andar e tropecei em duas pernas que não eram minhas. Bati de cara no chão.
- Léo, você tá bem? Ouvi Guilherme perguntar.
Aqueles idiotas. Odiava todos eles.
- Sai da minha frente. Eu disse, empurrando seu braço que tentava me levantar.
- Léo, você quer ajuda? Eu posso te levar na enfermaria.
- Eu estou bem, Karina. Continuei andando sem nem virar o rosto em sua direção.
- Vocês são foda, viu?
Ouvi ela reclamar em direção aos meninos. Comecei a andar mais depressa.
Eu estava puto, me sentia humilhado. Será que eu não era capaz de sair da escola sozinho sem passar vergonha? Eu duvidava.
Contei os passos até a casa da minha vó, um pouco distraído. O som uniforme da bengala batendo no chão me irritava. Naquele dia, tudo me irritava.
Cheguei na casa da minha vó e me sentei a mesa enquanto ela avisava minha mãe de que eu tinha chegado. Não falei muito então ela percebeu que algo estava errado e não tentou me pressionar para falar. Quando voltei pra casa peguei o caminho mais longo que eu eu Gi costumávamos pegar pra prolongar a caminhada. Andei prestando atenção aos sons a minha volta. Os pássaros cantando, as folhas batendo e os cachorros latindo. Estava tentando ficar calmo.
Claro que o exercício não adiantou nada quando cheguei em casa. Meus pais me esperavam na sala, preocupados com a minha demora.
- Onde é que você estava, Leonardo?
Minha mãe estava gritando.
- Fui dar uma volta.
- Uma volta? Você não pensou que talvez fosse bom ligar pra sua mãe e avisar que você não ia voltar pra casa?
- Mãe, relaxa. Eu estou aqui.
- Léo, você sabe que horas são? Você saindo de noite sozinho nesse escuro!
- Mãe, pra mim está sempre escuro. Não precisa dessa neurose toda.
- Por que você não atendeu o seu celular?
Ela agarrou meu braço com força, me impedindo de ir pro meu quarto.
- Me desculpa, tá? Ele tava na mochila. Eu acho que já sou velho o suficiente pra não precisar te dar satisfação de tudo que eu faço.
Percebi que estava gritando também. Me desvencilhei da sua mão
- Leonardo, meu filho, você ainda vai ter que dar muita satisfação pra gente ainda.
- Porra, pai, você também? Será que eu não posso dar um passo sem vocês me vigiarem?
- Você some por horas e você quer que a gente fique tranquilo?
- Mãe, pergunta pra qualquer pessoa da minha sala se os pais iriam ficar tão nervosos por um atrasinho desses.
- Léo, você sabe que é diferente?
Era isso, eu tinha chegado no meu limite. O fato de eu ser cego me levava de volta aos 5 anos, quando a criança precisa de supervisão 100% do tempo para evitar que enfie um punhado de terra na boca.
- E por que tem que ser diferente?- Eu estava gritando de novo- Por que você não tenta fazer ser igual?
Dessa vez, quando tentei andar até o meu quarto, ninguém me impediu.
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Hoje eu quero voltar sozinho
Teen FictionBaseada em um filme de Daniel Ribeiro, essa história é a transcrição do filme em formato de livro. O filme (o qual você deveria ver agora) trata sobre um garoto cego que se descobre homossexual. A história é contada pelos 3 personagens principais:...