O alimento das águas

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Não posso descrever a cor da grama ou a textura de uma mão. Nem mesmo o quão leve a brisa do mar é. Não posso descrever o lugar onde estou ou o que sou. Não posso sentir o cheiro das flores ou das folhas das árvores após a chuva. Não tenho ao menos a capacidade de sentir o cheiro da chuva ou seu toque.

Mas posso descrever a energia da grama, que com toda certeza grita "verde". Posso sentir a energia de uma mão arranhando-me, machucando-me, acarinhando-me. Posso sentir a energia do sal do mar dizendo "olá" e a energia de sua brisa batendo de leve em meu corpo.

Posso sentir o ambiente, indicando a energia de outros seres: cigarras, pássaros, seivas... Posso sentir as flores cumprimentando-me e as folhas das árvores pedindo perdão por caírem sobre mim. Posso sentir a energia da água, caindo do céu, purificando o ar e voltando ao seu lar, a terra.

Posso sentir agora mesmo uma energia feminina, não marcada por estereótipos materiais, mas espirituais. Seu belo fluido de resistência, sabedoria, coragem e força.

Ela agora desfruta da água. Sei que ela nada veste além de seu corpo. Já não é a primeira vez que ela vem. Passou por mim e não notou, como usualmente. Sou um detalhe insignificante para aquele emaranhado de maus sentimentos, estes tão pesados que afundam na energia da água.

Mas há algo de estranho agora. Normalmente, sua energia é de uma distração peculiarmente enorme e hoje, está concentrada, determinada.

Sua energia, por atração, imerge na da água. São energias opostas que se atraem, assim como os polos nos extremos da terra. A leveza da energia da água contracenando com a densidade da energia da moça.

A água tenta lutar com sua energia, em um ato intenso, violento e difícil. Por mais difícil que fora a luta, consegue vencer e aquela energia cruel e amarga dá lugar a uma energia benéfica e sutil ao seu corpo.

Mas então, percebo que o que faz aquilo não é a energia da sutileza, nem mesmo do bem, mas sim, a do silêncio, somada a falta de vivacidade.

Por um bom tempo tudo passa a ser angústia, sofrimento, dor, agonia e o corpo fica tão pesado, que a energia da água não suporta e engole-o.

Até que...

Até que não resta nada.

Qualquer sinal, de qualquer energia sumiu daquele corpo, tornando-o tão leve que a faz boiar.

E, a partir deste momento, sei que desta vez não será sua energia que ficará aqui enquanto seu corpo vaga por aí.
Hoje sei que seu corpo ficará.

Sei que a energia do mar alimentou-se da sua energia e logo, quando seu corpo perecer, alimentará o próprio mar e a terra alojada a seu fundo.

Sei também que nunca mais sentirei sua energia, tão pesada, tão escura, tão semelhante a minha.

Talvez tenha sido um erro meu apaixonar-me por sua energia, então, esquecerei-a.

Mas, por enquanto, terei de me contentar com a energia da grama, do ambiente, das flores, das folhas da árvore, da chuva e de minha própria energia.

Terei de me contentar em me esquecer o que sou - ou ao menos do que me chamam -, em nunca mais escutar sua energia distraidamente olhar para mim, sem nem mesmo notar-me, e dizer:

"Pedra".

Fábulas EpifânicasOnde histórias criam vida. Descubra agora