Sobre pedras conversantes, poemas e dor

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Do dia em que nasci até os meus 7 anos, fui criada em um ambiente muito interessante. Afastado do centro da cidade, uma área periférica com praia. Nada de asfalto, muitas árvores, terra, barro (não é atoa que o Balneário dos Prazeres era chamado de "Barro Duro") e, na praia, obviamente, com muitas pedras, mar e areia. Morava, na época, somente com a minha mãe. Das conexões da natureza, me recordo apenas de algumas coisas pontuais. Não era uma típica moleca, dessas que trepam em árvores, ralam os joelhos e brincam de bola na rua. Mas lembro de pegar terra e folhas e fazer comidinhas. Lembro de temer andar sobre a areia nas poucas vezes em que íamos para a praia (achava assustador os pés afundarem). Dizem também, que quando ainda era criança de colo e ficava coladinha no colo do meu pai (um homem muito alto), gostava de admirar as copas das árvores e tentar pegar suas folhinhas.

Mas a lembrança mais vívida de interação com seres que não falam que tenho, tem todo um significado. Minha mãe, na época, vivia um período muito difícil. Estava deprimida e sofria de bulimia. Tinha dias em que a via sem forças para levantar, chorando na cama. Isso criou um sentimento de empatia e de vontade de cuidar das pessoas que nunca abandonou minha vida. O fato é que ela buscou muitos caminhos para viver. Meditava, acreditava nos Orixás -- cresci em gira de Umbanda, no meio de pretos velhos, caboclos, ciganos, erês e exus --, ouvia mantras e acreditava na energia das coisas. Ela sempre me dizia que tudo era energia. Da pedrinha que eu pisava no chão, aos cachorros e gatos que tínhamos. Que eu poderia conversar com uma pedra, se quisesse, que ela, além de ser uma boa ouvinte, conversaria comigo também, da sua maneira. Eu, com toda curiosidade típica infantil, achei aquilo ali muito interessante.

A nossa casa tinha um pátio enorme na frente, com muitas graminhas e pedras, demarcado com um muro (aqueles com os clássicos sistemas de proteção de baixa renda: os famosos cacos de vidro) e um portãozinho enferrujado. Lembro que nossa gata, Rada, não tinha caixa de areia: como uma lady, cavava seus buracos na terra, fazia suas necessidades, e logo após, as enterrava. Aquilo me encantava. Apesar disso, era um ambiente muito limpo, a grama jamais tocava nos tornozelos. Minha mãe sempre solicitava pessoas para cuidar da área. Então, por menos moleca que fosse, todas as sopinhas feitas de terra e água que eu fazia, era sentadinha ali, naquela graminha. Aquilo que a minha mãe tinha me dito sobre pedras conversarem com a gente me interessou tanto que lembro de me sentar, próxima ao muro da frente de casa, pegar uma pedrinha e bater um papo com ela. Ouvir suas palavras inaudíveis, rir de suas expressões invisíveis.

Cresci e perdi o contato com isso tudo. Talvez amadurecer te tire algumas conexões. Talvez se mudar para o centro da cidade te impossibilite o contato com a natureza. Não sei. Sei que esqueci essa história das pedras conversantes por um tempo. Minha mãe se curou de tudo aquilo que a consumia, meu irmãozinho caçula nasceu, meu pai e minha mãe tornaram-se casal novamente e construímos uma vida distante de praias e terra. 

Até que... mudei de cidade. Há três anos já. No auge dos meus catorze anos. A verdade é que a mudança, somada com a puberdade, as inseguranças e alguns traumas de infância envolvendo bullying e racismo me desregularam completamente. Emocionalmente e fisicamente. Sou diabética e vivia um período chamado lua-de-mel, em que meu pâncreas ainda produzia secreções de insulina e permitiam que meus níveis glicêmicos fossem de uma pessoa sem a doença. Cheguei aqui nessa cidade e minha compulsão por comida e minha indisciplina se fizeram tão grande que sobrecarreguei meu pâncreas e saí dessa fase. Atualmente, aplico bastante insulina para poder ter um nível glicêmico adequado. Já tive vários conflitos em relação a tudo isso que me levaram a boas sessões de terapia. Mas antes de se tornar tão visível assim a ponto dos meus pais se darem conta de que tinha que haver a intervenção de um profissional, eu escrevi O Alimento das Águas. Numa dessas fugas da realidade, em que a gente retorna ao conforto do passado, lembrei das minhas conversas com as pedras e imaginei como seria nossa última conversa. Deu nesse primeiro conto que vocês vão ler aí. Mais tarde, no mesmo ano, vivenciei uma situação complicada. Escrevi a sequência, com a mesma narradora, Dona Pedra, meio modificada. Porque, afinal, a vida é fluida e muda, se sedimenta. Logo, as pedras também. Surgiu então O Vento Contra O Mar.

Achei tratar-se de algo sem prosseguimento. Abandonei despretensiosamente. Vivi outros tempos difíceis, que tornaram-se não contos, mas poemas, textos aleatórios com as analogias das mais variadas possíveis. Até que, com essa quarentena, me encontrei agoniada ao extremo novamente e simplesmente surgiu meu jardim de flores brancas. Sem pretensão nenhuma de compôr parte de trama alguma. Mas logo me dei conta que vibrava na mesma sintonia que O Alimento das Águas e O Vento Contra O Mar. E então decidi juntar os três em um livro de contos e assim surge o Fábulas Epifânicas. 

Não sei Fábulas Epifânicas serão sempre esses três textos. A vida é fluida, meus dedos fluem conforme minha mente. Talvez, venha mais um conto compor aqui. Ou talvez não. Nunca se sabe. O fato é que é isso que tenho a apresentar à literatura contemporânea. Dor e angústia em forma de poesia. Em conversa com a natureza. Seja ela falante, seja ela calada. Espero que isso venha a ter algum impacto em quem estiver lendo. Se quiser chamar isso de prólogo, chame. Se quiser considerar que compõe a obra, sinta-se a vontade. Só vamos nessa.

Fábulas EpifânicasOnde histórias criam vida. Descubra agora